no centenário do nascimento de joaquim namorado, aqui ficam algumas memórias das conversas, muitas, que mantivemos ao longo de alguns anos.
em coimbra foi o matemático, poeta, crítico, ensaísta, joaquim namorado, quem encarnou a cidade, onde tanto ele como eu éramos estrangeiros: o joaquim de alter e eu de …..
nas nossas conversas no tropical, não foram muitas mas intensas, muito aprendi com ele. quando morreu em 84, vivia eu em braga, morreu para a mim a praça da república.
fica aqui a memória de uma conversa curta:
– dr. joaquim, não se esqueça de que não é por acaso que chamam a coimbra “lusa atenas”.
– oh cravo, lusa apenas, cravo, lusa apenas….
eu e joaquim namorado, no tropical, anos 70 e 80
certo dia a conversa recaiu sobre a construção do poema, como se chegava à escrita do verso.
eu – disse joaquim namorado – escrevo sempre primeiro em prosa, tudo seguido. depois vou à procura de ritmos e começo a partir em versos, a seguir leio tudo de novo e vou limpando o que acho que está a mais e burilo o poema.
por vezes o produto final tem pouco a ver com a primeira escrita, mas a ideia inicial está lá.
um exemplo: na década de 50 andava tudo desanimado e começaram-se a escrever poemas sobre viagens aos mares do sul. eu também tentei. comecei a escrever, escrevi, escrevi e apliquei o método do costume. o poema ficou assim:
título
“a minha viagem aos mares do sul”
poema
“e eu não fui lá”
era assim joaquim namorado.
eu e joaquim namorado, no tropical, anos 70 e 80 (cont.)
uma das máximas de joaquim namorado era:
– cravo, nunca dês nada. ninguém da valor ao que não paga.
um dia, depois de uma noite que nem sei se dormi, sentei-me pela manhã num café ao lado tropical, o “piolho” e com uma cerveja na mão, foi um despejar de palavras.
depois de ter afinado o que tinha escrito, fui à Associação Académica (AAC) e numa máquina de escrever despejei em duas folhas o que tinha escrito: ” dis(re)curso da loucura, ou outra maneira de falar da praça da república”. do original tirei 100 cópias, agrafei as duas folhas e fui-me para o tropical.
à mesa do costume, a tomar a bica, lá estava joaquim namorado. não resisti:
– dr. joaquim, acabei agora mesmo de o escrever, são 25 tostões (2$50). quer um?
– oh cravo, tu a mim não vendes, dás.
– nem pensar, ou compra ou nada
não comprou
em pouco tempo vendi os 100 exemplares e, como a procura continuava, regressei à AAC, escrevi na primeira página, ao cimo, 2ª edição, tirei mais cópias e regressei à praça.
joaquim namorado continuava sentado à mesma mesa. voltei ao ataque:
– dr. joaquim, ainda não quer comprar? olhe que já vai na 2ª edição.
– tá bem cravo, toma lá os 25 tostões
o poema foi depois publicado num número especial da Via Latina, revista da AAC.
e é este:
dis(re)curso da loucura ou outra maneira de falar da praça da república
ave lexotan
ave vallium
ave lexotan
ave santos profanos
ave caminhos perdidos para o infinito
ave rosete
ave chiclete
ave danças sem febre
e à semana
ave fuga
ave loucura
ave mesas espartilho
desta praça prisão
ave vendedores de bolas de sabão
ave jorge fallorca
ave só rock
ave tardes de feriados
tardes inúteis de cafés fechados
e partidas para o sul
ave estudantes que não estudais
e
ave também oh sábios
que marrais, marrais, marrais
ave consumidores de haxe
e outras práticas iniciáticas
ave mês de junho
preâmbulo do desejo
ave praias
angústia súbita e longínqua
de mar e azul
ave chris
ave regresso infindo
a esta merda de quotidiano
ave oh tangueado
que nunca deixarás de o ser
e é teu o reino do engano
ave oh eterno sonhador
que conheces o caminho da loucura
e desconheces o do rancor
ave oh marginal
que estás lado
(o centro é coisa de poder)
ave sábados à tarde
ave também oh eu
que sou tudo isto
e mais não posso ser
(convém lembrar de que estávamos nos inícios de 80 e o poema é muito datado)
eu e joaquim namorado, no tropical, anos 70 e 80 (cont.)
o joaquim tinha a sua tertúlia de modo que as nossas conversas/encontros eram sempre no intervalo.
o mestre e o marginal. o estalinista e o esquerdista.
joaquim namorado era matemático e tinha sido assistente da faculdade de ciências, até que foi expulso da função pública por ser membro do partido comunista, motivo pelo qual também esteve preso. passou a viver de explicações de matemática que dava aos alunos da faculdade onde antes ensinara.
depois do 25 de abril foi reintegrado e leccionou a cadeira de história das ciências.
das nossas conversas sobre política e universidade recordo 3 máximas:
– nesta época de pragmatismo o grande desafio é ser dogmático
– coimbra é um monte de merda com um gato morto em cima que é a universidade
– vocês querem reformar a universidade, mas aquilo não se reforma, destrói-se
( e eu é que era o esquerdista….)
um belo dia de fim de primavera, tínhamos tomado o café no tropical e decidimos dar um passeio pela praça da república – fazer piscinas. junta-se a nós um colega meu, intelectual da mais pura gema, trotskista, recém-chegado do porto.
entrou na conversa e não deixou de pedir a opinião ao dr. joaquim namorado sobre trotski.
o joaquim fez uma análise demorada e bastante interessante sobre a obra do trotski, que ia deixando enlevado o ouvinte.
quando já estava o rapaz embalado no ouvir um estalinista dizer tão bem de trotski, joaquim namorado remata:
– trotski só tinha um defeito
– qual era dr. joaquim? (perguntou, ansioso, o meu colega)
– não era marxista!
um balde água fria à joaquim namorado. era assim sempre, provocatório e intenso.
eu e joaquim namorado no tropical, onde mais?
numa daquelas manhãs em que nos cafés as mesas são dos que ainda têm tempo, estava eu a conversar com o joaquim, no silêncio do tropical, quando de repente ele me pergunta:
– tens aí o carro, cravo?
– leva-me já aos covões, à cardiologia
peguei nas chaves, levantámo-nos e saímos. durante o caminho ainda lhe perguntei se sentia bem, a resposta foi à joaquim:
– cala-te e guia!
entrámos pelas urgências e fomos direitos à cardiologia. o diagnóstico foi rápido: enfarte.
ficou internado durante uns dias e saiu com pacemaker.
tempos depois, em mas uma das nossas curtas conversas, sai-se, espantosamente, com esta:
– cravo, tenho os dois volumes da primeira edição do orpheu e vendo-tos por 5 contos.
eu, que de bibliófilo nada tinha, devorava palavras sem importar que edição, respondi:
– oh dr joaquim mas eu tenho-os e já os li.
não muito tempo passado, em 1986, o joaquim morre de leucemia em coimbra. nunca vi tantos homens juntos a chorar.
entendi então o que ele pretendia ao querer vender-me a primeira edição do orpheu. era uma prenda de amigo mas, utilizando a sua velha máxima “não se dá valor ao oferecido”, tinha de ser vendida. não sei quanto vale hoje uma primeira edição do orpheu, nem se as há disponíveis.
ficou-me, isso sim, para sempre, a dor de não ter ficado com uma lembrança de joaquim namorado e isso não tem preço.
joaquim namorado abriu-me as portas de grandes escritores, ensinou-me a ler, que é algo mais do que soletrar letras.
(aqui ficam estas breves estórias de uma amizade que me marcou para sempre)
Só por si este texto merecia ser publicado…e deveria ser!…nem que seja um capítulo de vidas da sua vida, ou coisa assim.
António Ferro Piçarra
obrigado antónio ferro. penso que este texto foi um dos incluídos na biografia de joaquim namorado, editada pela “lápis de memórias” e da autoria de jaime do couto ferreira. abraço