O NAUFRÁGIO DO NATHALIE E O ARRAIS ANÇÃ (QUE NÃO ESTEVE LÁ) «1»


PROVEM-ME O CONTRÁRIO, POR FAVOR

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que fique, desde já, claro que não sou historiador nem investigador de história local. aquilo que sei sobre este assunto teve a ver com a busca de informações sobre antepassados meus, pescadores da torreira e da ria de aveiro, que teriam estado envolvidos no salvamento dos tripulantes e passageiros do nathalie. tudo o mais resulta desta “procura”.

as minhas primeiras investigações, levaram-me a contactar o museu da marinha, procurando informações sobre o naufrágio e os nomes dos salvadores. depois de alguma insistência foi-me respondido por email que quem tinha feito o salvamento tinha sido o arrais Ançã.

foi na murtosa, pela mão da drª Andreia Leite, que cheguei ao documento com que iniciei a publicação anterior e que me confirmou a existência de dois “gorim” entre os salvadores e os medalhados. em documento algum encontrei menção ao arrais ançã.

depois de muito caminho percorrido consegui ficar documentado sobre aquilo que me interessava: descrição do naufrágio, identificação dos pescadores que participaram no salvamento e diário do governo em que se encontrava publicada a atribuição das medalhas (publicação anterior).

não pretendo, de modo nenhum, questionar o valor e os feitos do arrais Gabriel Ançã – aliás também tenho sangue de “ílhavo” e honram-me os seus feitos. se vier a ser demonstrado, documentalmente que ele de facto participou no salvamento, penso que, mais uma vez, valeu a pena. há homens que foram tão grandes que acabaram por lhe ser atribuídos feitos com os quais nada tiveram a ver, pode ser o caso.

0 – o postal

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um dia, numa feira das velharias na figueira da foz, encontrei numa banca de venda de postais, o postal que reproduzo e que está na origem da publicação feita na página Rialidades.

depois de ler a legenda, tinha de comprar o postal. espantava-me que, depois de tudo o que tinha consultado e nunca ter encontrado referência ao arrais Ançã, encontrar num postal antigo a informação «Distinguiu-se no naufrágio do vapor francês “ Nathalie”, em 23-X-1880, trazendo no barco os 17 tripulantes, incluindo uma senhora»

no verso do postal o preço, 28 euros. virei-me para o vendedor e disse-lhe: compro, mas nunca uma mentira que custou tanto! espantado o vendedor perguntou-me o que queria dizer, pelo que lhe contei das minhas aventuras e investigações que me levaram a concluir que o arrais Ançã nunca tivera nada a ver com o salvamento dos náufragos do nathalie. logo se dispôs a emprestar-me o postal para que o digitalizasse, sem quaisquer custos, e lho devolvesse. mas eu queria o postal e acabei por o comprar por um preço substancialmente inferior. afinal ainda se vendia caro esta informação que eu tinha por incorrecta e, pior do que isso, já se vendia há muito, que o postal era antigo.

voltei de novo à pesquisa e encontrei na net documentação interessante e a falta dela, o que também tem o seu interesse. a net permite uma difusão rápida, e por uma vasta audiência, de informações que raramente se questionam.

aqui ficam alguns dos documentos. 

1 – página da câmara munipal de ílhavo (transcrição da publicação)

Gabriel Ançã

Gabriel Ançã nasceu em Ílhavo, a 8 de janeiro de 1845, filho de pais muito humildes. Apesar de ter frequentado a escola do Professor Ratola, optou por seguir a vida de seu pai, João José Ançã, que era pescador. Desde muito novo que Gabriel Ançã começou a dar provas da sua valentia, nadando descontraidamente na praia da Costa Nova, relando sempre bom fôlego. Com 18 anos fez a travessia do rio Tejo a nado. Mas um ano antes, nesse mesmo rio, mostrou as suas capacidades. Trabalhava entao numa barca inglesa que encalhou e socorreu quantos naufragaram, incluindo uma criança.

Com 19 anos já era Arrais. Por esta altura salvou 35 náufragos de um barco que virou na Costa Nova. Mas o resgate porque ficou conhecido deu-se em outubro de 1880. o vapor frances “Natave” naufragou a 2 Kms da Praia da Torreira. Apesar da fúria das águas do mar, Gabriel Ançã conseguiu sozinho salvar 17 pessoas. Por esse feito recebeu uma medalha, entregue pelo Conselheiro Manuel Firmino. Durante a sua vida salvou 123 pessoas.

Em 1886 foi condecorado pelo Rei D. Luís, com medalha de ouro para a distinção e prémio concedido ao mérito, Filantropia e generosidade.

Morreu em fevereiro de 1930, com 85 anos de idade, tranquilo em sua casa, mas triste porque nunca mais iria ver o mar.”

consultável em http://www.cm-ilhavo.pt/pages/1026

(notas: [1] Gabriel Ançã conseguiu sozinho salvar 17 pessoas…. em poucas palavras se “apaga da memória” os 51 pescadores da torreira agraciados com medalha de prata “ para distincção e prémio concedida ao mérito philantropia e generosidade”, em diário do governo de 14 de dezembro de 1880. [2] o facto de o nome do barco estar errado e a menção à medalha que foi entregue ao arrais por Manuel Firmino, não os considero relevantes, senão na medida em que demonstram, o primeiro pouco cuidado no descrito e o segundo o ficar por demonstrar)

2 – diário da câmara dos deputados de 02/08/1922 (transcrição da publicação)

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Diário da Câmara dos Deputados

Em 1882 voltou-se na rebentação da Praia de S. Jacinto um barco com 35 homens de tripulação, que foram todos salvos, graças à decisão e intrepidez do Gabriel Anca, que imediatamente lançou outro barco à água e os recolheu, apesar da violência do mar.

Em 1892, tendo saído da Costa Nova, para o mar, com bom tempo, governando um barco de pesca de xávega, com 37 homens – de tripulação, foi surpreendido por um violentíssimo temporal de SW. – Após longas, horas de luta cino o tempo e mar, tendo os remadores as mãos ensanguentadas, e caindo todos de fadiga, tendo reconhecido que não podia arribar a Leixões, porque se achava, esgotada a energia da sua tripulação, conseguiu reanimá-la com o exemplo do seu inalterável sangue frio, e, num supremo esforço, conduziu o seu barco a varar na praia de S. Jacinto, sem perder um único homem.

Este facto, presenciado por centenas de pessoas, dominadas por uma profunda emoção, ficou na memória de toda a população de Aveiro, consagrado como um milagre de audácia e de aptidão profissional. ……….”

consultável, na totalidade, em http://debates.parlamento.pt/catalogo/r1/cd/01/06/01/122/1922-08-02/8

(notas: [1] estes foram os factos considerados relevantes pelo parlamento, para propor actualização da pensão atribuída ao arrais ançã. [2] não há qualquer referência ao “nathalie”. estranho, ou terão os deputados considerado irrelevante tal facto? a verdade é que não se referem a ele. registe-se que é um documento oficial.)

 

3página http://ww3.aeje.pt/avcultur/Secjeste/Recortes/Historia/Hist001.htm

(transcrição da publicação )

José Alves da Silva,Manuel Firmino de Almeida Maia, In: Aveirenses Ilustres. Retratos à minuta, Edição do X Encontro de Professores de História da Zona Centro, Aveiro, 1992, pp. 35-38.

Manuel Firmino de Almeida Maia(1824-1897)

“……….

Dissolvida a Câmara de Deputados em virtude da queda do governo, estava terminado o mandato de Manuel Firmino em Janeiro de 1868, que também saiu derrotado nas eleições municipais de Fevereiro do mesmo ano. Decidiu abster-se da política por algum tempo, a fim de melhor administrar os seus bens familiares. Manuel Firmino dirigiu então a sua acção para uma actividade onde nunca se havia ocupado: organizou as companhas de pesca na costa de S. Jacinto, tendo-se construído em 1876 um caminho de ferro desde a ria até ao mar, com um comprimento de 1250 metros. Quatro anos depois, alargava a empresa à praia da Torreira. Foi próximo desta praia que Manuel Firmino e mais alguns pescadores salvaram a vida a 17 sobreviventes do navio a vapor francês “Nathalie”, que por ali naufragou, vítima de tempestade. No Havre, porto francês de onde o navio partira com destino ao norte de África, elegeram Manuel Firmino sócio honorário da sociedade dos salvadores do Havre e o governo francês condecorou-o, em Abril de 1882, com a Cruz da Legião de Honra, pela coragem e determinação demonstrada no salvamento das vítimas do naufrágio. Condecorado também pela casa real portuguesa, com a medalha de ouro por mérito, filantropia e generosidade, Manuel Firmino pedia ao rei que o dispensasse de aceitar a medalha com que o agraciara, justificando-se que apenas agira conforme o seu coração lhe ordenara…..”

José Alves da Silva
Professor de História
Escola Preparatória de Estarreja

BIBLIOGRAFIA

GOMES, Marques, João Augusto, Cinquenta anos de vida pública. O Conselheiro Manuel Firmino d ‘Almeida Maia, Aveiro, 1899.

CERQUElRA, Eduardo, O Centenário do “Campeão do Vouga”, Notas de recordação do primeiro jornal aveirense”, in Arquivo do Distrito de Aveiro, volume XVIII, 1952.

CERQUElRA, Eduardo – “Jornais e jornalistas aveirenses”, in revista Aveiro e o seu Distrito, n° 5, 1968.

(nota: como se pode constatar mais uma vez não é citado o nome do arrais Ançã, como estando presente)

 

4 – página http://ptencontro.blogspot.pt/2008/06/arrais-parte-ii.html (transcrição da publicação )

 

“ ……. Cunha e Costa, em “Paisagens, perfis e polémicas”, escreveu sobre o arrais Ançã, conforme pude ler na “Geografia de Portugal” de Amorim Girão, que ele “salvou para cima de cento e vinte vidas. Ainda novo, perdido estaria a tripulação da barca francesa Nathalie se não fora ele. A mulher do capitão, desvairada pelo terror, atirou-se do convés para o mar: recebeu-a o Ançan (sic) nos braços. Pesava menos que um lenço de assoar, mas como vinha tocada do alto, ainda me fez arrear um bocado os cotovelos……..

Professor Fernando Martins”

(notas: [1] “Paisagens, perfis e polémicas” editado em 1922. [2] “Geografia de Portugal” editado em 1941, 1949 e 1960. [3] não quero questionar os trabalhos dos autores citados, mas sim este caso concreto. note-se que a primeira publicação é do mesmo ano em que no parlamento, conforme documento anterior, se falou do arrais e não se fez qualquer referência ao naufrágio do nathalie. [4] interessante começar a ver nascer o romancear do que podia ter sido uma tragédia, a introdução de uma “fala” do arrais e cito: « Pesava menos que um lenço de assoar, mas como vinha tocada do alto, ainda me fez arrear um bocado os cotovelos».)

 

5 – página http://200anosdacosta-nova.blogspot.pt/2008/06/2-00-anos-da-costa-nova-fascculo-27-15.html (transcrição da publicação )

 

15.2- ARRAIS ANÇÃ (1845-1930)

É Guilhermino Ramalheira que nos fala [1]desse herói – O arrais Ançã – que em Outubro de 1886 arranca trinta e uma vidas francesas, subtraídas às garras do “cão danado”- era assim que o arrais tratava o mar – feito que lhe mereceu a outorga da medalha de ouro concedida pelo Governo Francês, e outras duas – a de prata e a de ouro -, que ao Ançã foram atribuídas pelo Governo Português e que Lhe foram entregues pessoalmente por El-Rei D.Carlos, como recompensa de tantos e tão enormes feitos praticados por aquele «bravo». Que “à humanidade emprestou o mais brutal e formidável exemplo de demência heróica”[2]; de quem o mar nunca teria zombado.

[1] Ramalheira, Guilhermino in «Arrais Ançã»

[2 ] Maia Alcoforado in – Ílhavo Terra Maruja – Marujos da Terra dos «Ílhavos» “

(notas: [1]se o autor se refere ao naufrágio do nathalie, só acertou no mês, o ano não é 1886, mas sim 1880. [2] os sobreviventes postos em terra pelos salvadores, foram 17 e não 31. [3] trata-se de um documento de 1962 data em que estavam disponíveis informações suficientes sobre o naufrágio. porquê tantos erros? o que me espanta é a falta de análise de quem transcreve, o autor do blog/página, Senos da Fonseca)

6 – no livroCosta-Nova-do-Prado 200 anos de História e Tradição (2009)” de Senos da Fonseca (transcrição)

“……

É Guilhermino Ramalheira que nos fala [1] desse herói – O arrais Ançã – que em Outubro de 1886 arranca trinta e uma vidas francesas, subtraídas às garras do “cão danado”- era assim que o arrais tratava o mar – feito que lhe mereceu a outorga da medalha de ouro concedida pelo Governo Francês, e outras duas – a de prata e a de ouro -, que ao Ançã foram atribuídas pelo Governo Português e que Lhe foram entregues pessoalmente por El-Rei D.Carlos, como recompensa de tantos e tão enormes feitos praticados por aquele «bravo». Que “à humanidade emprestou o mais brutal e formidável exemplo de demência heróica”[2]; de quem o mar nunca teria zombado.

…. Em 1880 [a] aconteceu o naufrágio do vapor francês “Nathalie” nas imediações da costa da Torreira. Tripulantes e passageiros tinham ali, a dois passos do areal, a morte que parecia certa. Varado na duna estava um “meia-lua” da Xávega [b], propriedade de Manuel Firmino. Geram-se hesitações, pois se há vontade de salvar aqueles infelizes, há a consciência arrepiante de que deitar a «meia-lua» à vaga, naquelas condições, era arrojo de demência que se podia transformar em catástrofe ainda maior. Valeu a chegada do já arrais Ançã para pôr termo ao enlevo colectivo, desafiando:

– «Eh! Rapazes, enquanto eu aqui estiver, nunca contem c’ua morte. Vamos lá maneiem-se» [c]

E dezassete [d] vidas são trazidas para terra. Avulta o episódio rocambolesco do Arrais, a incitar a «franciú» a se atirar para os seus braços. Por medo ou por não entender o que Ançã queria, a francesa parece não decidir. O Arrais barafusta até que a tripulante se atira de chapuz para o bojo do «meia-lua»[e]:

« – Eu a perder tempo e o «estipôr» a fazer-se cara. Só quando se baldeou e lhe vi as lágrimas é que entendi que estas eram iguais em todos os falatórios» ……. “ [c]

[1] Ramalheira, Guilhermino in «Gabriel Ançã, Símbolo do Heroiísmo dos Homens do Mar», ed. C.M.I. 1962 ;

[2 ] Maia Alcoforado in – Ílhavo Terra Maruja – Marujos da Terra dos «Ílhavos» “

(notas: [a] ver citação Guilhermino Ramalheira: 1886 [b] relato do “campeão das províncias” – « Por quinze juntas de bois das companhas de que era proprietário na Torreira, faz arrastar pela areia, numa distância de dois mil metros, que tanta é a que medeia entre a Costa e o local do sinistro, um dos seus barcos de pesca, o da Senhora da Arrábida……» “campeão das províncias” [c] mais uma vez se assiste a uma tentativa de romancear com a introdução de uma “fala” do arrais [d] ver citação Guilhermino Ramalheira: 31  [e] a este respeito: 

1. “…… A mulher do capitão, desvairada pelo terror, atirou-se do convés para o mar: recebeu-a o Ançan (sic) nos braços. Pesava menos que um lenço de assoar, mas como vinha tocada do alto, ainda me fez arrear um bocado os cotovelos” – Professor Fernando Martins, citando Amorim Girão, que cita Cunha e Costa. (já transcrito acima)

2. “campeão das províncias” « Havia entre os náufragos uma senhora, Félice Bouvoir, que é o mais vivo exemplo da heroicidade no sofrimento e da coragem nas aflições. Refugiada no cesto da gávea, era a primeira a animar com palavras e gestos os seus companheiros de infortúnio, a aguardarem um socorro que lhes não era lícito prever, ou que poderia vir já tarde…..»

7 – conclusão (sempre provisória e com base nos documentos expostos)

na ordenação dos documentos insertos nesta publicação segui a ordem cronológica de publicação, com excepção do primeiro, câmara de ílhavo, a que gostaria ter adicionado a câmara da murtosa e a junta de freguesia da torreira – infelizmente, nas páginas destas entidades a pesquisa “nathalie” não deu retorno, logo nenhuma delas releva este acontecimento.

feita esta breve introdução queria salientar as seguintes conclusões:

1 – nos documentos “oficiais e de investigação” – documentos 2 e 3 – não se encontra qualquer referência à presença do arrais Ançã no salvamento dos náufragos do nathalie, a que acresce o noticiado no “campeão das províncias”  e os nomes constantes no “diário do governo”, conforme transcrição feita em publicação anterior.

2 – nos restantes a menção da presença do arrais Ançã no salvamento fica por provar

3 – em resumo, não encontrei, até ao momento, qualquer publicação oficial ou resultante de investigação reconhecida, que me permita concluir que o arrais Ançã participou no salvamento do nathalie.

4 – congratulo-me com o facto de os ilhavenses terem prestado homenagem ao arrais Ançã, e continuem a fazê-lo, enquanto os murtoseiros e torrecos, se limitaram a dar aos pescadores medalhados e que fizeram o salvamento o nome de uma rua : “heróis do nathalie” – que não tem sequer a placa toponímica. 

 

#nathalie #ançã