em 2006 para além das companhas de pescadores da torreira – olá sam paio e maria de fátima – trabalhavam ao sul do molhe sul duas companhas de pescadores do furadouro : a companha do jacinto e a companha do pepolim. a primeira com o barco “srª da piedade” a segunda com “o jovem”.
a companha do jacinto só fez a safra de 2006, a do pepolim ainda por lá continua.
liderada pelo arrais chico giesteira, descendente de uma das famílias de arrais mais tradicionais do furadouro, o chico é um grande arrais, certamente o melhor arrais que até hoje conheci.
para acompanhar a faina tinha de esperar que viessem ao pão, à torreira, ao meio da manha e me dessem boleia de tractor até ao acampamento, onde almoçava com a companha.
um dia houve em que, de manhã, vendo o mar mais manso, disse ao chico: hoje vou ao mar.
quando o barco se preparava para partir desci até à borda de água e ao olhar para as ondas mudei de ideias e disse ao chico: afinal já não vou.
de sorriso nos lábios respondeu-me : eu já sabia, você só viu o mar lá de cima.
à tarde o mar acalmou um pouco e o chico deixou-me ir com eles.
é desse lanço que, sem a espectacularidade que de terra proporciona a largada e o arribar do barco, resultam os registos que seguem
(documento escrito em 2010)
como a corrente dominante na costa ocidental portuguesa é de norte, o barco de mar vai em direcção ao norte para que a rede venha trazida pela corrente até próximo do local de largada.
a distância a que é feito o lanço depende do comprimentos das “calas”, cordas que ligam a rede a terra.
as calas são duas:
o reçoeiro – cuja extremidade fica em terra
a mão de barca – que virá para terra com o barco de mar
neste registo é o reçoeiro que vai saindo do barco de mar à medida que nos vamos afastando da costa
por momentos estamos no meio do mar rodeados de silêncios e somos senhores do infinito.
existimos apenas, peixes outros que sobre as águas navegam.
única a sensação.
longe de tudo e tão perto de nada, o pescador é dono e senhor, por uma fracção de tempo, de um universo só seu: a liberdade.
é preciso ir ao mar para sentir que só a terra é falsa
lança-se o arinque do reçoeiro
as calas ligam à manga da rede no “calão”. aí se prendem os “arinques”, bóias que servem de referência quando se ala a rede para terra.
um alar bem feito traz em paralelo o arinque da mão de barca e o arinque do reçoeiro: ou seja a rede tem de vir paralela à costa, para que não o peixe não fuja.
nalgumas redes há ainda quem ponha uma bóia no meio do saco o “calime”.
o calão não é mais que um pau que se coloca no início da manga para a manter aberta, impedindo o peixe de fugir.
interessante é que calão era também o nome dado ao barco que, na xávega mediterrânica e algarvia, levava a rede.
mas falar de tudo isto era um romance
lento o movimento continua.
o saco desce ao mar onde, quem sabe, carapau.
a mão de barca começa a ser lançada ao mar
a manga da mão de barca é lançada ao mar.
a rede está toda na água
o arinque da manga da mão de barca é lançado ao mar.
segue-se agora a cala da mão de barca.
a rede está lançada. virá peixe?
ser pescador artesanal é “lavrar o mar”, como já foi escrito, e não saber da colheita feita a sementeira, acrescento eu.
agora sim, a rede está toda na água
dentro da barca
as mãos
sobrantes nunca
descansando
por vezes
atentas na corda
na outra mão
a de barca
que do barco mão é
quando no caminho
para terra
o segura
o ampara do embate
das ondas
do grito
do mar
as mãos
são
o homem
na raiz
das coisas
na fome
de vida
no amor
no sal
no sul
onde mãos
por mãos
esperam
outras mãos
calam a cala
e é de barca a mão
que as tange
assim na xávega
renascem
fortes e pujantes
ternas e amantes
as mãos
sobrantes nunca
há no pescador um misto de arte e esperança.
assim se faz a xávega
os movimentos repetem-se agora em sentido inverso.
de regresso é a mão de barca que zune
o motor no máximo. é preciso chegar rápido a terra, onde um tractor já começou a puxar o reçoeiro.
a ida ao mar está a chegar ao fim. a terra aproxima-se.
um homem cresceu entretanto
há quem olhe para os carros, outros para a marca da roupa, outros para os rostos …. outros devoram com os olhos o que não comem
todos buscam o mesmo: conhecer
eu olho para as mãos e sei que aqui, aqui, encontro tudo.
as mãos do pescadores são rudes, gretadas, feridas, mas extremamente limpas.
são mãos que o mar lava e areia esfrega.
são mãos de trabalho, mãos de homens e mulheres que trazem nelas a história de uma vida, de um amor, de uma guerra, de uma faina,….
em 2005 continuava a trabalhar na praia da torreira a companha dos murtas, com o barco olá sam paio.
dos irmãos zé e antónio murta. o antónio era mais o homem de mar e o zé o de terra. creio que é em 2005 que falece o antónio em naufrágio à beira praia.
era, e é, opinião minha, uma companha familiar – da propriedade à própria composição da companha.
para além dos arrais e donos, não posso deixar de me lembrar da marlene, filha do zé, que era a responsável pela “contabilidade” da companha, e do redeiro, ti caetano da mata.
todos os dias, de acordo com as instruções do arrais chico giesteira (chico de ovar), a companha faz as viagens de ida e volta: furadouro-torreira.
instalam-se ao sul do molhe sul, onde têm tudo o que é necessário para passar o dia: uma caixa térmica de uma carrinha, que serve de dispensa, um coberto que abriga uma mesa e equipamento de cozinha.
um depósito industrial de gasóleo para abastecer tractores e motores.
da companha fazem parte duas mulheres, que ajudam na escolha do peixe e cozinham para toda a companha. a organização imposta pelo arrais e voluntariamente aceite por todos, é a melhor que até hoje vi.
se há ainda lobos do mar, o chico é certamente um deles.
(companha do pepolim – do furadouro a trabalhar na praia da torreira; 2006)
quando a cavala é muita, o carapau foge e a colheita é fraca. uma caixa de cavala (10 a 12 kg) chega a ser vendida a 3 euros ou menos, quando tem comprador