traz

traz nas mãos a manhã para que o dia nasça onde nunca nasceu assim te espero
torreira; cirandar; 2011
escrevo-me
quim marçal
por hoje chega
a carregar berbigão
(torreira; 2017)
auto-retrato (4)
o meu amigo zé de gaia
o tempo escasseia
caminho
na lama da memória
apanho conchas
quase vazias
encho-as de rostos
pesco ao contrário
um chapisco nos dias
o silêncio a cobrir
um nome
arderei até
(torreira; 2014)
ainda
estarei onde
os olhos poisarem
serenos de
sou o que regressa
por ser
esta a terra o mar
as gentes
vivo onde estou
sou onde sinto
um sorriso
questiona-me
já por cá
ainda
os “henrique gamelas” pai e filho
(torreira; cabrita baixa; 2012)
inexplicável
não me perguntes
porque escrevo
não me perguntes
porque estou vivo
em tudo
muito pouco
é explicável
inexplicáveis os dias
onde sou
e tudo acontece
nem só a fé
é mistério
o tino a reparar a cabrita
(torreira; 2013)
deixa-os descobrir
deixa que pensem
a higiene mental diária
só lhes faz bem
ignoram porém
que tu também
as pedras no caminho
há sempre pedras no caminho
não são exclusivo de ninguém
deixa que pensem
que só as há no teu
entre a ignorância
e a sabedoria
a fronteira é ténue
deixa-os descobrir
(torreira; saco de berbigão de 20 kg; 2009)
aos homens e mulheres da ria
cirandar e escolher
existem homens
que fazem barcos
como se filhos
existem homens
que os encomendam
fazem neles vida
existem mulheres
camaradas dos homens
na faina dos barcos
homens e mulheres
sempre
mulheres e homens
os barcos só
não existiriam
(torreira; cirandar; 2016)
não há futuro na ria
maria josé moreirinhas, na sua tese de mestrado “SOLIDARIEDADE E SOBREVIVÊNCIA NA RIA DE AVEIRO” – editada em 1998, com patrocínio da câmara municipal da murtosa – escreve na página 167 “ Em 1994, na Torreira, apenas apareceu um intermediário (para a compra de ameijoa e berbigão; o resto do pescado é vendido em Pardelhas) que, como único comprador estabeleceu o preço que lhe convinha” ……
estamos em 2017
a praça de pardelhas já não existe, os intermediários agora são 2 e compram tudo: berbigão, ameijoa, choco, linguado, lampreia …. são eles que estabelecem os preços e, no caso do berbigão, definem ainda as quantidades e os dias da compra.
acabou-se a capacidade de os pescadores venderem num mercado concorrencial, com todas as consequências que dai resultam para os seus rendimentos. mais ainda, existem contratos “de fidelização” com os intermediários, com aplicação de “multa” em caso de venda a terceiros.
de todos os pescadores da torreira, dos dedos de uma mão sobram muitos depois de contarmos os que não têm contrato com um intermediário.
não escrevo, nem digo mais nada. quem lê que tire as suas conclusões.
a ria, o rio, a laguna, como lhe queiram chamar, tem uma saída para o mar, os pescadores da torreira também. aos mais novos resta-lhes ainda emigrar ou, com alguma sorte, arranjar emprego na pouca indústria que na zona existe.
não há futuro na ria
nota: para quem se interessar pela vida dos pescadores da torreira aconselho a leitura do livro com que abro esta crónica