poesia y otras letras
poesia y otras letras: sentou-se à mesa do café
poesia y otras letras
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poesia y otras letras
poesia y otras letras : maria antónio bastos
Carta a minha mãe
E o que queria dizer-te é da falta dos nexos da vida,
da tua falta, do espanto da tua morte,
do espanto que foi nascer de ti, crescer de ti
dentro e fora do teu corpo já tão frio
nessa noite tão fria rompendo-se de agosto
nesta noite rompendo-se sem sentido
E o que queria dizer-te, mãe, é desta dor gritante,
dissonante e que altíssima se ouve em mim
como se as tigelas se partissem todas ao mesmo tempo
mas tu inerte, imóvel e enterrada como em Pompeia
E que outra noite quebrei propositadamente
outra tigela de louça branca com flores
só para que de novo viesses e varresses a cozinha
e os cacos do meu coração também partido
mesmo que o que te apetecesse fosse escrever
E o que queria dizer-te é desses teus poemas
que dizem tigelas, leite-creme, testamentos
e o que querem dizer é amor, amor maternal
Dizer-te perdoa, minha mãe, pelo meu crime
pelos outros versos que feliz te roubei
quando mansamente adormeci em teu colo
Dizer-te que cumpridos teus desejos de morta:
vejo dentro das coisas e sonho sóis azuis
faço mal a cama e as contas de somar
não descasco batatas e, sim, lembro-me de ti
E o que queria dizer-te nesta carta-poema
ou neste poema-carta, eu filha, tu mãe,
fascinada por cartas portuguesas e também do mundo
e também repletas de filhas e mães
Dizer-te que mães continuam a morrer
e demasiadas não por doença, assassinadas
Dizer-te que filhas continuam a viver
e demasiadas sem mães, sem ninguém
Dizer-te quantas mães e filhas não sobrevivem
nesta fila no espaço, nesta fila no tempo que é a vida
nesta fila de condenados inocentes a lembrar Goya
e que ainda agora, no novelo das guerras a oriente,
mais uma bomba, mais corpos tão desfigurados
que nem a mãe consegue reconhecer a própria filha
ou filhas, esburacadas, isto não queria dizer-te
E não queria dizer-te cadáver e o que isso quer dizer

