os moliceiros têm vela (97)


body 0113

ahcravo_DSC_1070 bw

um número numa caixa de madeira
depois de ter sido um número numa terra
numa estatística numa máquina de fazer números
um número onde cabem inúmeros só números
sem nome sem família sem data de nascimento
só registo de morte e vala comum a tantos números

um número cada vez maior
nas contas dos bancos offshore
do petróleo das matérias primas
da madeira do petróleo do petróleo
do domínio da geografia onde
for possível ainda sugar dólares euros
de corpos cansados famintos destruídos

corpos sem cotação aparente
no mercado de valores commodities nasdak
nada que possa ser adquirido trocado
valorizado considerado investimento
corpos amarrados sugados espoliados
corpos escravizados pelos senhores da guerra
das fábricas de armamento florescentes
de um ocidente decadente e cínico

body 0113
não descanso em paz

o mar pode ser nostrum
mas com que direito o transformamos
no cemitério vostrum?

a globalização do capital é uma frase gasta
mas é uma realidade dura negra árabe
carregada de balas mísseis torturas genocídios
medo fome doença miséria destroços humanos
fuga roubo estupro fuga roubo morte

body 0113
não descanso em paz
não descanso
não

ahcravo_DSC_1070

(ria de aveiro; regata da ria; 2014)

os moliceiros têm vela (94)


postal de longe

a chegar a aveiro

a chegar a aveiro

quisera não gostar de ti
de te sentir
tão por dentro de mim
como se eu

quisera não te saber
o passado
preso no meu nome
família de

quisera não gostar de ti
assistir
de olhos secos e mudo
cúmplice
moderno sobrevivente

quisera não me deixasses
assim sem terra
nem raízes nem história
deserdado de mim

se é este o teu futuro
seja
mas não contes comigo
nele

antes não te ver mais
para te ofertar como foste

chamam-lhe recachia

chamam-lhe recachia

(ria de aveiro; regata da ria; 2010)

os moliceiros têm vela (83)


da aprendizagem

ahcravo_DSC_2046 bw
o poeta menor
sentou-se na soleira
do poeta maior

na pedra fria da porta
colheu as pegadas do mestre

procurou palavras sentires
saberes da escrita
que admirava e não atingia

o poeta menor
levantou-se da soleira
do poeta maior
e tinha o rabo gelado

nada mais aprendera
que a frieza da pedra

ahcravo_DSC_2046

(ria de aveiro; regata da ria; 2010)

os moliceiros têm vela (78)


do sorriso

no moliceiro "dos netos" o ti abílio e o ré rebelo (seu pupilo)

no moliceiro “dos netos” o ti abílio e o zé rebelo (seu pupilo), a chegarem a aveiro

solares os dias em que sorris
renascido de um tempo parado

és-me de novo não sei por
quanto tempo mais

sou inteiro por instantes

mestre e pupilo, em lição de velejar

mestre e pupilo, em lição de velejar

(ria de aveiro; regata da ria; 2013)

no moliceiro “dos netos”, o ti abílio e o zé rebelo

os moliceiros têm vela (77)


dos gatos

em bando vogam

em bando vogam

à janela o gato sábio
lambe os bigodes fartos
queda-se imóvel
no gastar dos dias

sereno constrói o salto
imagina a presa sem pressa
espera espera espera

crítico
não desespera
o gato

gosto do laborioso rato

toda a beleza é aqui

toda a beleza é aqui

(ria de aveiro; regata da ria; 2010)

os moliceiros têm vela (75)


um nós novo

nós

nós

traz-me tudo menos
esse olhar perdido
onde já nada navega
senão o por dentro
de coisa nenhuma

o vazio é um caminho
não o inicies

empresta-me os teus olhos
deixa que os leve até onde
fomos sol e sombra
ombro a ombro os dias galgados
na cumplicidade concebida
de afectos

o vazio é um não lugar

o braço que te abraça
suporta o peso insuportável
dos anos sobre ti

és tu e eu
um nós diverso
em busca de

nós sempre

nós sempre

(ria de aveiro; regata da ria; 2009)

os moliceiros têm vela (73)


esperar

ahcravo_DSC_2039 bw

aprender o tempo
no contar pelos dedos

lento muito lento
o movimento

parados os olhos
imóvel o rosto
sem expressão
esperar esperar
não há primavera
nem andorinhas

aprender o corpo
no contar do tempo

o movimento
lento muito lento
até que parado

ahcravo_DSC_2039

(ria de aveiro; regata da ria; 2010)