os moliceiros têm vela (71)


aos moliceiros

mete água? escoa!

mete água? escoa!

homens inteiros
até ao fim
a palavra na mão
que aperta

homens de fibra
feita na lide
dos dias de norte
terras muitas
escritas no corpo
sofridos dias

levarão com eles
mais que o corpo
a história da terra

água que entra tem de sair

água que entra tem de sair

(ria de aveiro; regata de ria; 2014)

os moliceiros têm vela (66)


da terra e das gentes

nem para mortalha, que tal não merecem

nem para mortalha, que tal não merecem

amortalhados serão os sonhos
na brancura de nada mais haver
que a memória

falarão dos dias havidos como se
tivesse de ser assim destino
fado português

ficam vozes perdidas no azul
aves de asas cortadas
um canto triste

tudo o que foi não será mais
não haver gente nesta terra
é ter ela o tamanho do seu
cemitério

que não descansem em paz

toda a beleza e é só pano

toda a beleza e é só pano

(torreira; regata da ria; 2014)

os moliceiros têm vela (63)


o meu lado

que se passará sob a superfície das  aguas?

que se passará sob a superfície das
aguas?

escrevo de um país ao lado
de um povo sem casa
nem abrigo desempregado
ou mal pago doente
de não haver orçamento
e não saber o que isso é

escrevo de um país ao lado
de meninos mascarados de homem
mamando no biberão do tacho
cuspindo insultos sem pudor
sobre quem nada pode

escrevo de um país ao lado
marginalizado por ter sido sempre
o motor do barco e ser lançado
borda fora pelos passeantes de serviço
como se lastro a mais depois de usado

cansa-me esta gentinha de gravata
fato pendurado no corpo
passeando o arroto em alta cilindrada
pelas avenidas da minha vergonha
escrevo de um país ao lado

e sei qual é o meu lado

é preciso encher os olhos para tapar a boca

é preciso encher os olhos para tapar a boca

(ria de aveiro; regata da ria; 2010)

os moliceiros têm vela (54)


o fio do tempo

enrolada a vela no mastro, o zé rito espera

enrolada a vela no mastro, o zé rito espera

fazer do hoje
um ontem
de que o amanhã
se orgulhe

pesado fardo este
de tão fino fio
ser tecido o pano
que o corpo cobre

de frio tremerá
quem mal o tecer

o bonito vende bem,  a  beleza não tem preço

o bonito vende bem, a beleza não tem preço

(torreira; regata da ria; 2011)

os moliceiros têm vela (51)


do ouvir

como se planassem

é esta a luz, é este o cantar

uma voz antiga
debruçada na janela
dos meus olhos
canta

canta como se
ouvisse outras vozes
mais antigas
cantar

cantar palavras de luz
é destino
de quem nasceu para
ouvir

ouve-as comigo

foi para ti que cantei esta canção

foi para ti que cantei esta canção

(torreira; regata do s.paio; 2010)

os moliceiros têm vela (49)


da praça

a luta é dura

a luta é dura

no centro da praça
não navegam barcos
correm papéis por sobre
secretárias modernas
onde escribas ocupam cadeiras
e fabricam o tempo à medida
dos senhores da terra

do centro da praça
partem emissários e ordens
encomendas e despachos
fabricam-se realidades
emitem-se pagamentos
decide-se o quê
quando como para quem

ao centro da praça
exactamente ao centro
uma coroa de flores
espera os fiéis

defuntos

mais dura é a razão

mais dura é a razão

(ria de aveiro; regata da ria; 2010)

os moliceiros têm vela (46)


contigo quantos?

mais que barcos são homens e a sua história

mais que barcos são homens e a sua história

jamais negarei
o silêncio
as vozes por dentro
o clamor

não sei se algures
um homem poderá ainda
afastar as nuvens
num grito de sol ardente

as palavras que não digo
serão poucas
não procuro a perfeição
o meu tempo é hoje
o meu lugar aqui

sou mais um
mais um
um

contigo quantos?

se quisermos ser mais que silêncio e consentimento, seremos povo

se quisermos ser mais que silêncio e consentimento, seremos povo

(ria de aveiro; regata da ria; 2010)

os moliceiros têm vela (43)


traquinas

um sorriso de criança

um sorriso de criança

trago nos olhos
um sorriso de criança

uma fisga na mão
um papagaio de papel

uma bola de sabão
um carrinho de madeira

umas caricas oferecidas
um jogo por acabar

dentro de mim
nasce uma pergunta
traquina

nunca mais cresces?

um jogo por acabar

um jogo por acabar

(ria de aveiro; regata da ria; 2010)

os moliceiros têm vela (39)


dos mandantes

do mesmo tamanho, só a distância ilude

do mesmo tamanho, só a distância ilude

terão no cemitério da terra
uma lápide diferente
porque não as há iguais
se diversos os nomes

são enormes se vivos
tão grandes que não os agouchamos
usando verbo da terra
iludem-se no serem hoje
heróis de um amanhã
que não verão

são apenas
mandantes por mandato
mandatados

velas ao vento e todos pelo mesmo

velas ao vento e todos pelo mesmo

(ria de aveiro; regata da ria; 2013)

os moliceiros têm vela (32)


dos dias

sucedem-se no tempo e ...

sucedem-se no tempo e …

amanhã outro dia será
comigo ou sem
o tempo seguirá o seu curso
sereno e ridente

uma flor abrirá algures
as pétalas ao sol
uma criança beijará a mãe
e muitos terão partido

hoje sou e canto

e o vento?

e o vento?

(ria de aveiro; regata da ria; 2011)