os moliceiros têm vela (560)


não foi falsa a partida
ti abílio
foi a sua vez foi sozinho

em 2024
a ria perdeu a brejeirice
perdeu-o

carteirista era a sua alcunha
ti abílio

nas regatas
não era a competição
era a participação
a justiça

um carteirista
a clamar justiça
só na ria
só você ti abílio

a sua regata chegou ao fim
em 2024
a nossa amizade continua
até eu partir

(ti abílio carteirista; s. paio; torreira; 2016)

ti abílio carteirista


“são todos uns insurrectos, cravo!”

só ele sabia dizer esta frase que passou a ser minha saudação provocatória: “você é um insurrecto, ti abílio!”

se existe a “brejeirice da beira ria” como forma de expressão, era no ti abílio que ela encarnava, na malandrice , no sorriso, na ingenuidade sábia, no ser amigo.

o ano passado falei com ele duas vezes pelo telefone, uma das vezes liguei-lhe eu a dar-lhe os parabéns, como era costume, a outra foi ele que me ligou e me deixou preocupado e triste. o ti abílio tinha vendido o moliceiro “Dos Netos” porque já não se sentia em condições de navegar e ao telefone disse-me mais ou menos isto:

  • que faço eu aqui cravo? vou todos os dias ao bico ver a ria e choro

havia dois moliceiros de velha cepa na murtosa: o ti zé rebeço e o ti abílio carteirista. mas bastava dizer “ti zé” ou “ti abílio” e todos sabíamos, sabemos, quem eram.

ambos morreram

ambos estão vivos, o ti zé e o ti abílio são para sempre

morreu tanta memória com eles, só não pode morrer o dever que temos para com a sua memória: continuar com a tradição dos moliceiros – os verdadeiros, com vela.

o ti abílio morreu ontem dia 10 de janeiro de 2024

(torreira; regata da ria; 2017)