torreira, 2009, à memória do arrais zé murta
eu sei
o mar
conheço-lhe as manhas
promessas e traições
nevoeiros ondas correntes
eu sei
o vento
norte forte furioso
correndo na areia
erguendo ondas vagas
onde planícies
eu sei
disso depende a minha vida
nesta arte sofrida
sal sol suor mar vento areia
carne curtida
tempo outro mais veloz
eu sei
mas não é por saber
que resisto ao mar
ao seu apelo
à voz
(torreira; século XX)
resta-me o futuro
a esperança de haver
mais mar
aqui moram
as minhas memórias
pegadas
coladas
à areia de ser eu aqui
um grão
no vento voado
do tempo
resta-me o futuro
espuma das ondas
a rebentar nas proas
barcos
peixe pouco
deixando em terra
escamas de mar
aqui moram os meus
sonhos
mesmo os que não tive
(torreita, século XX)
“é peixe do maaaaar!!!!”
e o mar corria
pelos caminhos
entrava nas casas
matava outras fomes
uma sardinha
para quantos ?
quantas sardinhas
para um ?
e de novo o mar pingava
da broa para o prato
era bebido
lambido
sorvido
mesmo que agora
já não corras
nem uses canastra
tens da xávega
uma alcunha marcante
olívia borras
(torreira, século XX)
Nota: o avô da olívia, o ti manel borras, falecido em 1947, é uma figura típica e controversa na torreira. foi pescador, sofreu naufrágios, mas terminou a vida alcoolizado, sendo sua a célebre frase ” se o mar fosse de vinho ia a pé até à américa”.
fiz alguma investigação sobre a vida do ti manel e muito haveria para contar, desde o papel do vinho nas companhas, aos interesses dos arrais, dos vendedores de vinho “salroeiros” – de salreu -, à participação do ti manel nas festas da “gente fina” da terra” e ao apoio da família pinto ( fundadora do banco pinto & sotto mayor), que lhe pagou o funeral na condição de que este passasse à porta de sua casa.
história para outra altura
a vida fez de mim o que sou
o mar afeiçoou-me os traços
queimou-me o rosto
rasgou-me as mãos
ensinou-me a ser paciente
a só ter medo do medo
espero pelos dias de sol
pescando noutras águas
o mar é ainda o desafio
casa grande o barco alberga-me
o corpo da fúria das vagas
leva-me onde talvez peixe
deixo o meu nome escrito
na areia
junto ao de todos os meus camaradas
que o tempo levou
e o vento apagou
(torreira; século XX)
aos gritos das gentes
sucede agora o silêncio
morte lenta
na rede
peixe do mar
que a terra chegou
tudo isto me encontra
num mundo só meu
feito de mar e areia
castelos de que sou rei
senhor e plebeu
na areia
lentamente o movimento
desaparece
o brilho das escamas voadas
pousou e morreu
o tempo passou
como o norte pela areia
deixou-me aqui
seguiu viagem para outros destinos
plantado neste areal
sou mais uma árvore
raízes fundas cravadas no mar
arrancando cada dia
o alimento que me mantém vivo
o tempo passou
com ele passarei também
serei memória se o for
poeira no vento
que voará para mais além
(torreira, século XX)