quando o mar trabalha na torreira_luciano amaral


luciano amaral

 

eu sei

o mar
conheço-lhe as manhas
promessas e traições
nevoeiros ondas correntes

eu sei

o vento
norte forte furioso
correndo na areia
erguendo ondas vagas
onde planícies

eu sei

disso depende a minha vida
nesta arte sofrida
sal sol suor mar vento areia
carne curtida
tempo outro mais veloz

eu sei

mas não é por saber
que resisto ao mar
ao seu apelo
à voz

 

(torreira; século XX)

quando o mar trabalha na torreira_alfredo afonso (cricas)


alfredo afonso (cricas) _ falecido

 

resta-me o futuro
a esperança de haver
mais mar

aqui moram
as minhas memórias
pegadas
coladas
à areia de ser eu aqui
um grão
no vento voado
do tempo

resta-me o futuro
espuma das ondas
a rebentar nas proas
barcos
peixe pouco
deixando em terra
escamas de mar

aqui moram os meus
sonhos
mesmo os que não tive

 

(torreita, século XX)

mais um


agostinho trabalhito (canhoto)

 
dir-te-ão as bibliotecas
onde
os livros mais raros
se
 
do mar encontrarás
muitos
 
ficarás a saber
das marés e das ondas
dos fundos das planícies
das montanhas e dos abismos
que esconde
 
gastarás neles os olhos
e, quiçá, escreverás também tu
mais um livro
a juntar a tantos outros
 
porém
nada terás lido sobre o mar
se não fores capaz
de ler o rosto de um pescador
 
pensar-te-ás sabedor
na tua ignorância letrada
mais um
 
(torreira, companha do marco, 2010)

quando o mar trabalha na torreira_olívia borras


olívia borras

 

“é peixe do maaaaar!!!!”

e o mar corria
pelos caminhos
entrava nas casas
matava outras fomes

uma sardinha
para quantos ?
quantas sardinhas
para um ?

e de novo o mar pingava
da broa para o prato
era bebido
lambido
sorvido

mesmo que agora
já não corras
nem uses canastra
tens da xávega
uma alcunha marcante
olívia borras

(torreira, século XX)

Nota: o avô da olívia, o ti manel borras, falecido em 1947, é uma figura típica e controversa na torreira. foi pescador, sofreu naufrágios, mas terminou a vida alcoolizado, sendo sua a célebre frase ” se o mar fosse de vinho ia a pé até à américa”. 

fiz alguma investigação sobre a vida do ti manel e muito haveria para contar, desde o papel do vinho nas companhas, aos interesses dos arrais, dos vendedores de vinho “salroeiros” – de salreu -, à participação do ti manel nas festas da “gente fina” da terra” e ao apoio da família pinto ( fundadora do banco pinto & sotto mayor), que lhe pagou o funeral na condição de que este passasse à porta de sua casa.

história para outra altura

quando o mar trabalha na torreira_celestino


celestino

 

a vida fez de mim o que sou
o mar afeiçoou-me os traços
queimou-me o rosto
rasgou-me as mãos
ensinou-me a ser paciente
a só ter medo do medo

espero pelos dias de sol
pescando noutras águas

o mar é ainda o desafio
casa grande o barco alberga-me
o corpo da fúria das vagas
leva-me onde talvez peixe

deixo o meu nome escrito
na areia
junto ao de todos os meus camaradas
que o tempo levou
e o vento apagou

(torreira; século XX)

quando o mar trabalha na torreira_ti henrique gamelas


ti henrique gamelas

 
na areia o fruto do lanço
o suor feito peixe

aos gritos das gentes
sucede agora o silêncio
morte lenta
na rede

peixe do mar
que a terra chegou

tudo isto me encontra
num mundo só meu
feito de mar e areia
castelos de que sou rei
senhor e plebeu

na areia
lentamente o movimento
desaparece
o brilho das escamas voadas
pousou e morreu

 
(torreira; século XX)

quando o mar trabalha na torreira_antónio serra


antónio serra

 

o tempo passou
como o norte pela areia
deixou-me aqui
seguiu viagem para outros destinos

plantado neste areal
sou mais uma árvore
raízes fundas cravadas no mar
arrancando cada dia
o alimento que me mantém vivo

o tempo passou
com ele passarei também
serei memória se o for
poeira no vento
que voará para mais além

 

(torreira, século XX)