não vos dou palavras
dou-vos pernas, braços e um coração naufragado
não vos dou palavras
dou-me a mim todo transubstanciado em poema
aceitem, se quiserem, as palavras que não vos dou
mas não aplaudam
o vosso espectáculo
são as minhas lágrimas, angústias e desesperos
não vos dou palavras
dou-vos bofetadas que, por vezes, aceitais com um sorriso
porque o sorriso é a vossa reacção típica
e se eu não escrevesse ?
e se eu não vivesse de olhos abertos sobre cada dia
em cada dia suportando estar vivo
inventando searas e papoilas no deserto dos vossos olhos ?
e se eu pudesse dormir como vós descansadamente
com um policial ou um romance à cabeceira
e se eu me sentisse satisfeito com a telenovela
e me bastasse o mau gosto de um jantar num restaurante de três estrelas
“em boa companhia”
para ser feliz ?
e se eu fosse como vós
que tudo tendes
e mesmo quando não tendes fechais os olhos e tendes tudo ?
e se eu não pensasse ?
se eu fosse como vós
não haveria mais palavras
porque não haveria mais chaparros solitários
as estações estariam sempre certas e eu seria sempre feliz
à vossa maneira, é certo, mas feliz
mas não
continuo a dar-vos palavras que não o são
continuo à procura de não sei bem o quê
mas continuo sempre
dou-vos este corpo
que escorre sangue, sonho, amor e ódio
a quem por vezes apetece ser como o vosso
só para não ter nada que escrever