cultura avieira e Projecto Comenius – We Are What We Eat (WAWWE)


A Escola Profissional do Vale do Tejo de Santarém (EPVT) promoveu um encontro de alunos e de professores de várias escolas da União Europeia, no âmbito do desenvolvimento do Projecto Comenius – We Are What We Eat (WAWWE) que visa debater hábitos alimentares saudáveis nas escolas.

No âmbito da temática “Gastronomia enquanto agente identitário das comunidades” foi o Projecto da Cultura Avieira convidado para fazer uma apresentação do seu ideário e dos seus objectivos, no decurso dos trabalhos deste encontro internacional, que juntou comunidades de Portugal, Bélgica, Grécia, Itália e Polónia.

Dessa acção vos damos conta na presente Folha Informativa.

 

O gabinete de coordenação

(Projecto de candidatura da cultura Avieira a património nacional imaterial e da Unesco)

FOLHA Nº15-2012_O projecto educativo europeu Comenius e a cultura Avieira

A ligação do projecto dos Avieiros às Escolas e às comunidades educativas


 

Está em curso a fase de implementação do projecto dos Avieiros junto das comunidades escolares, de acordo com a estratégia definida. A acção que hoje apresentamos decorreu na Escola D. Dinis, nos Olivais – em Lisboa.

Num auditório com mais de 120 alunos/as e respectivos/as professores/as levou-se a cabo uma acção de promoção da cultura Avieira, do seu conhecimento, da sua compreensão e da sua valorização, através da educação não-formal.

A sessão constou de uma exposição fotográfica sobre os Avieiros, de uma exposição em diapositivos do ideário do Projecto Nacional da Cultura Avieira apresentada pela Dra. Lurdes Véstia, e do filme “ A Aldeia Avieira da Barreira da Bica”, disponível em http://www.youtube.com/watch?v=uhdYOCPb1qg., da responsabilidade do Sr. José Gaspar.

Após a sessão abriu-se o debate aos jovens que colocaram as perguntas que lhes interessava ver respondidas.

Por fim foi lançado o desafio para que as 5 turmas envolvidas fizessem um trabalho de grupo sobre a temática apresentada para serem posteriormente divulgados não só pela comunidade educativa, como através de uma Folha Informativa do Projecto Nacional da Cultura Avieira.

Dessa acção que está em pleno desenvolvimento vos damos conta na presente Folha Informativa.

 

O gabinete de coordenação

(Projecto de candidatura da cultura Avieira a património nacional imaterial e da Unesco)

pedaços da memória de um pescador avieiro do patacão -II


por amabilidade da comissão coordenadora do projecto da cultura avieira a património nacional

FOLHA INFORMATIVA Nº 37/2009

PEDAÇOS DE MEMÓRIA DE UM PESCADOR AVIEIRO DO PATACÃO  –  II

(transcrição integral de memórias – sem revisão de texto)

Nessa altura [no princípio dos anos setenta], os pescadores do Patacão começaram a fazer as suas próprias  searas porque não tinham outra saída. O peixe, em especial o sável, era muito pouco. Os pescadores  começaram a arrendar as terras e a fazer searas de melão e de tomate. Arrendavam ao Veiga, do Mouchão,  e fiz melão durante dois anos. Mas nessa altura o preço do melão não era como é agora. O primeiro que  vendi foi a um preço muito baixo, a mil e duzentos (um escudo e vinte centavos, na moeda antiga), no  outro ano vendi-o a oito tostões (oitenta centavos na moeda antiga) e vi-me à rasca para o vender…  depois vendi-o a cruzado, a cinco tostões… e quando fui a fazer contas, deu ela por ela. Só deu para as  despesas. No outro ano ainda fiquei empenhado na renda. Pagava setenta escudos para a renda. E por isso  desisti do melão.

Depois virei-me para o tomate, também em terra alugada, porque a gente não tinha terra nossa. Mas por f    fim acabei por desistir. A filha casou e fiquei sozinho com a mulher. Não pude e não quis continuar. Era  tudo feito à mão e era muito difícil. Agora as máquinas fazem tudo, mas naquela altura não era assim. Era  amanhar a terra, plantar, sachar, regar e tudo feito à mão. Vi que não tinha saída e disse para comigo:  “agora vou deixar de fazer seara”.

Voltei-me de novo para a pesca e para o trabalho no campo à jorna. De inverno era nas podas, depois  na amoirôa. Aprendi a trabalhar nas podas com os outros trabalhadores do campo. De dia ia trabalhar e de  noite ia para o mar, quer dizer para o rio, porque para os pescadores o Tejo sempre foi chamado de mar. Já tinha alguma prática de trabalho de corte em salgueiros, porque nessa altura as marachas tinham que ser arreadas. Os salgueiros secavam e eram desbastados de dois em dois anos. Quem fazia o serviço oficialmente era a Hidráulica do Tejo e quem pagava eram os patrões donos dos terrenos junto ao Tejo.

Os outros pescadores também começaram a fazer searas quando viram que o Tejo já não dava. Isto antes do 25 de Abril, no início da década de setenta.

Eu sou o último pescador a pescar no Patacão, o que fiz até Abril de 2007. Comecei a ficar lá sozinho depois de 1990. Ainda lá vai agora um familiar mas é só para apanhar peixe para caldeirada. Continua a haver pouco peixe no Tejo, embora mais do que há anos trás, em que quase não se apanhava nada.

Não tenho no Patacão nada de meu. O terreno onde tenho a barraca não me pertence, mas sim à Lagoalva. Os terrenos onde estão as outras barracas também não pertencem aos outros pescadores. Alguns dos terrenos onde estão ainda barracas pertenciam ao José Lico [grande lavrador]. Os pescadores não pagavam renda pelo terreno onde estavam as barracas. Ou melhor, a renda que pagavam, por contrato, era simbólica, no valor de cinco tostões (cinquenta centavos pela moeda antiga, ou 0,2 cêntimos de euro). Apesar do contrato existir, os pescadores nunca pagaram o valor dessa renda. O contrato está em nome de cada um dos rendeiros.

Quando comecei a namorar, era preciso por costume ter a autorização dos pais da rapariga. Mas eu nunca lhe pedi. Não pedi porque o pai dela era contrário ao namoro da filha comigo. Por isso, não pedi autorização para namorar, porque não adiantava. Mas namorei-a à mesma. Ela ainda me disse que eu tinha que ir pedir ao pai, mas eu disse-lhe que não valia a pena, porque ele dizia logo que não.

O pai dela nunca nos causou problemas. E depois de namorarmos, deu-se bem comigo e “não via outro Deus, senão eu”.

Depois a gente casou-se e ele nunca mais me disse nada. A mãe dela gostava bastante de mim. Só o pai é que ao princípio era assim, não sei porquê…

Só depois de estar casado é que comecei a pescar com ela no barco e a fazer vida de casados no barco. Antes nunca foi possível andar com ela assim, porque não o deixavam.

Eu fiquei sem mãe com a idade de três anos e fui criado com uma avó, quando a minha mãe morreu. Éramos quatro irmãos e eu era o mais novo.

Aprendi a pescar com o meu pai.

Casei-me com 20 anos e ela tinha 19 anos. Era mais nova do que eu 11 meses. O tempo de namoro foi de três anos, mas com os outros variava, era conforme…

Namorei com ela no Patacão, a gente encontrava-se nos bailes e também nas searas de arroz. Nessa altura ela trabalhava na monda do arroz, assim como eu. Trabalhávamos no mesmo sítio. Os homens também mondavam, e plantavam, e faziam a rebaixa, os canteiros, tanto os homens como as mulheres, ambos cavavam para endireitar a terra para fazer ou endireitar os combros, era um trabalho muito duro e pesado. Eu nunca fui cavar para o campo, como os operários agrícolas de Alpiarça. Os operários daqui iam para a poda e para outros trabalhos de campo.

Aqui em Alpiarça havia praça de jorna para os homens e para as mulheres. Nas alturas em que tínhamos que trabalhar no campo também íamos à praça de jorna. Os patrões nunca olharam para nós de maneira diferente só porque éramos pescadores, porque trabalhávamos como os outros.

Arranjei trabalho de maltezaria para a Azambuja, para uma quinta do Sr. José Lico. Já fui contratado de cá de Alpiarça para lá trabalhar na enxertia de vinhas e a meter bacêlo. Os enxertadores eram de Alpiarça. Ganhava-se melhor na Azambuja, mas era um trabalho muito duro. Dormia no quartel lá da quinta, como faziam aqui os Gaibéus que vinham lá das Beiras.

Só fiz uma maltezaria e depois fiz a minha primeira seara de tomate. Comecei a trabalhar no primeiro de Abril. Lembro-me do dia mas não me lembro do ano. Mas sei que foi logo antes do 25 de Abril.

Era mais duro cavar e fazer os outros trabalhos do campo do que trabalhar como pescador. Só que, no campo, a gente tinha um horário de entrada e outro de despega e chegava ao fim e tinha o salário. Tínhamos que ferrar com uma hora de sol e tínhamos uma hora para almoço. Isto foi no meu tempo. Porque houve outros tempos em que se começava a trabalhar quando o sol se levantava e se despegava quando o sol se punha.

Enquanto na pesca não tínhamos horário, tanto podíamos pescar de dia como de noite, e não tínhamos salário. Se não apanhássemos peixe, não podíamos vender e não tínhamos com que viver. E mesmo depois da pesca não podíamos descansar, porque tínhamos que remar até ao sítio onde ficávamos de um dia para o outro, isto antes de termos a barraca, e ainda tínhamos que arranjar as redes e ter tudo preparado para a pesca seguinte. Quando escolhíamos um pesqueiro e lançávamos as redes podíamos não apanhar nada e tínhamos que ir procurar outro sítio. Nunca havia certezas de nada.

No campo nunca trabalhei de sol-a-sol. Tinha sempre uma hora fixa para pegar e outra para despegar. E na pesca era a qualquer hora.

Voltando ao casamento, os pescadores casavam-se sempre por igreja, não se casavam pelo civil. Tinham fé, embora fossem pouco à Igreja. Baptizávamos os filhos pela Igreja. Os meus filhos são baptizados pela Igreja.

Quando nos casámos ela já ia grávida. Levava vestido uma saia e uma blusa cor-de-rosa e um mantéu, um véu bordado de casamento pela cabeça. O vestido foi mandado fazer para o casamento. O meu era um fato inteiro, para casamento. Foi o primeiro fato que eu vi no corpo. Depois de casado ainda continuei a usar o fato, mas só quando ia a um casamento ou um sítio em que tivesse que usar.

Antes de a gente se casar, tive que dizer à mãe dela que íamos casar. Ela estava grávida e a mãe ficou muito chateada. O pai nem me olhava para a cara.

Tivemos dois filhos. O meu filho, que é o mais velho, começou com uma dor no joelho quando tinha quatro anos e teve que ir para o hospital quando tinha cinco anos. Só de lá saiu com sete. O problema ficou sempre. Depois foi para a escola, para a Lagoalva. Do Patacão para a Lagoalva ainda é um bocado retirado e com a continuação do andar a perna teve mais problemas e teve que ir outra vez para o hospital. Fomos ao médico de Alpiarça, ao Dr. Romão, uma pessoa muito amiga e ele passou-lhe os papéis para o miúdo ser internado. Foi então para outro hospital em Lisboa e foi outra vez operado. Depois disso foi operado mais duas vezes e tem tido uma vida muito sacrificada.

Os miúdos iam à escola mas também nos ajudavam nos trabalhos da pesca. Apesar da doença ele ia comigo armar as redes, e andou a guardar umas ovelhas, lá no Lico. Depois, com 14 anos, arranjou emprego para uma fábrica

A menina era querida por todos, assim como o nosso filho. Ela cresceu, andou na escola, chegou a fazer a 4.ª Classe, depois trabalhou na apanha do tomate, e hoje é empregada no comércio. Casou-se com 16 anos, com um rapaz que é filho de um pescador também.

Quando o Patacão era habitado, chegaram a morar cerca de 23 casais, o que dava mais de sessenta pessoas. Na  altura do 25 de Abril todos viviam lá. Só depois é que os jovens começaram a casar e a sair para não mais voltar.  Deixaram aos poucos a pesca. Faziam searas mas ainda iam pescando. Os mais novos, como arranjavam outros t  trabalhos, iam saindo do Patacão. Os mais velhos começaram a fazer searas, também arranjavam trabalho nas  podas, e nessas alturas não pescavam.

O Patacão estava muito isolado e as pessoas deslocavam-se com muita dificuldade. A aldeia ficava longe da vila,  e a única estrada que havia era de terra batida. Só há pouco tempo é que a estrada foi alcatroada.

No Patacão, as famílias davam-se bem, não havia conflitos. Mas lembro-me que, antigamente, quando havia  sável, havia disputas e zaragatas por causa dos lanços.

Quando fui para a tropa em 1955, havia a guerra na Índia, mas eu não cheguei a ir para lá. Que eu saiba, só um  pescador que era das Barreiras da Bica, que fica em frente ao Mouchão das Paulinas, em Vale de Figueira, é que  foi para a Índia em 1955. Hoje não vive ninguém nas Paulinas.

Quando trabalhei na terra e criei algum gado, ovelhas e bezerros, foi possível juntar algum dinheiro. Com esse dinheiro pude comprar o terreno aqui em Alpiarça onde agora tenho a minha casa. Foi em 1992.

Trabalhávamos muito, na pesca, no campo e na criação de algum gado. Agora é que não se faz nada.

Alguns chegaram a comprar terras, mas são mais novos do que eu. Depois de comprarem a terra, deixaram de pescar e passaram a trabalhar só na terra. Estão todos cá por Alpiarça. Nenhum regressou a Vieira de Leiria. São pessoas da terceira geração dos que para cá vieram em primeiro lugar e já não sentiam ligação a Vieira de Leiria.

Os que compraram terras ou que trabalhavam com searas nunca mais voltaram a trabalhar na pesca, mudaram de actividade. Os que têm terras cultivam durante todo o ano com searas diversas – tomate, bróculo, beterraba.

O meu avô chamava-se José Jaqueta e a minha avó chamava-se Emília Lopes. O meu pai está sepultado aqui em Alpiarça mas a minha mãe está sepultada em Santarém. A maioria das famílias de pescadores tem os seus mortos sepultados no cemitério de Alpiarça. A minha patroa vai ao cemitério todas as semanas, porque tem lá o pai e a mãe.

Sempre fui uma pessoa saudável. Mas sempre havia alguns problemas que afligiam a saúde das pessoas. Quando assim acontecia, vínhamos até Alpiarça, a um dos médicos que havia na altura, o Dr. Neves, o Dr. Romão ou o Dr. Zúniga. Vínhamos até Alpiarça algumas vezes, e outras vezes iam os médicos lá ao Patacão. Uma das vezes foi a minha mulher que esteve muito mal, na altura em que o nosso filho tinha dois anitos. A mulher teve uma doença que esteve quase a desorpilar e aí foi lá o médico, o Dr. Neves, e conseguiu tratá-la e curá-la. Foi muito bom para nós. Mas com o tratamento da doença, todos os tostõezitos que tinha e que não tinha nessa altura, tive que os entregar e fiquei sem nada. E se não fossem os velhos a ajudar, não me tinha safado, porque fiquei sem um tostão. Tinha casado há pouco tempo e tinha conseguido juntar um conto de réis. Juntei o dinheiro a trabalhar nos campos de arroz, porque nessa altura era maltês. Já não estava com o velho, com o meu pai, ele estava no asilo, e consegui juntar esse conto de réis, que levei para o casamento. No casamento, fiquei com mais cem mil réis [500 euros] dos convidados. Agora, estes que casam é que ganham fortunas. Deviam era casar-se nessa altura, para saberem.

Antigamente, quando tínhamos uma dor de cabeça ou qualquer coisa pequena, isso não interessava, porque passava de seguida. Ninguém fazia caso disso. Havia no Patacão quem sabia rezar o quebranto, e algumas doenças eram tratadas com mezinhas. A doença do retorcido era tratada assim: quando torcíamos um braço ou uma perna, o que se fazia era meter a mão ou o pé dentro de água bem quente, a apanhar o calor quer da água quer do vapor. A minha sogra fazia uma oração e uma benzedura do retorcido para que as coisas fossem ao lugar, que as dores passassem e que o doente ficasse bem.

Por exemplo, eu parti umas costelas no Dia de Reis. Tinha ido à Lagoalva consertar um barco do engenheiro e depois de tudo arranjado ofereceram uma água-pé que bebi e fiquei um bocado tratado. A pinga era qualquer coisa de bom e não resisti. Quando vinha de regresso à barraca, eu vinha com a bicicleta à mão, eu amparava a bicicleta e ela amparava-me a mim. No caminho enfiou-se um arame na roda da frente, a bicicleta travou de repente, eu comecei a recuar de marcha atrás, perdi o equilíbrio, fui contra uma oliveira e parti as costelas. No dia seguinte, fui tratado ao retorcido com a fervura e o vapor da água dentro de um alguidar, e com a pesca ao barbo com tremalhos, quer dizer, foi curado a trabalhar. A minha sogra foi chamada para me tratar e aplicou-me umas ventosas no sítio doente. No dia seguinte estava um bocadito melhor e decidi ir à pesca. Com o esforço dos remos e de andar a lançar e a puxar as redes, tive uma recaída de noite. Assim fiquei pior por ter teimado em ir pescar com as costelas partidas. Não fui ao médico e as costelas tiveram que se soldar sozinhas. O mestre Zé Fernandes ainda me disse para eu ir ter com o abegão, que ele me punha no seguro. Fui ter com o abegão mas nada se resolveu. As coisas acabaram por se resolver sozinhas.

Mas quando os problemas não se conseguiam tratar, eram tratados pelos médicos de Alpiarça. Não havia assistência médica. Quem precisava de tratamento tinha que o pagar. Parece que agora é outra vez o mesmo. Só para a vista e as diabetes foram vinte e seis contos. Paguei mais doze contos para outras coisitas. Quer dizer, só para a farmácia foram trinta e oito contos. Foi uma conta calada só nesta virada. É metade da reforma. E daqui a nada tenho que ir aviar outra vez.

A luz foi alteada mais do dobro do que há pouco tempo atrás, não sei como é que arranjaram isto e agora ainda falam em aumentar ainda mais. Em 2005, pagava treze ou catorze euros por mês. Este ano já paguei quarenta e um euros cada dois meses, que são oito contos e tal, e cada mês são vinte e tal euros. Quer dizer que é metade a mais do que pagava. É um bom bocado a mais. Quase que não gasto luz. Eu deito-me o mais tardar às dez e meia da noite, só tenho uma arca congeladora e gasto pouco. Não sei como é que me podem levar tanto dinheiro.

Houve pescadores que começaram a trabalhar por conta própria quando se lançaram nas searas. Todos os anos fazem searas. Quem tem terras, mal acaba uma seara começa logo a preparar outra – bróculos, beterraba, tomate, melão.

Na altura das cheias, não me fale nas cheias, quando a água lá chegava, um fulano já não descansava toda a noite. Nas últimas grandes cheias que vieram parece que em 1979, nessa altura eu estava na roda lá no tapadão e só tinha um bezerro que andava a cuidar para a engorda. Estava eu lá na casa do guarda-rios, da venatória, e a água estava a vazar, o que me deixava descansado. Tínhamos dado a roda ao tapadão e assegurámos que a água estava a vazar. Deitámo-nos descansados. Às tantas da madrugada, noite cerrada, um parente meu que lá estava, que era o Inácio, levantou-se para se vir aliviar cá fora. Quando saiu e olhou para o Tejo viu que a água já tinha subido outra vez e que estava já quase a galgar o tapadão. Chamou-me a gritar: Eh pá, olha que a água está a galgar o tapadão, e está alguém a gritar ali para baixo, e eu desconfio que é a tua mulher que está a chamar. Aí vamos nós no barco, e vi a mulher. Pensei que por pouco ela não tinha morrido afogada. Lá mais abaixo vi pessoas dentro das barracas, aflitos, e vi depois o meu bezerro, já com água pela barriga. Deitei-me à água, com botas e tudo e fui puxar o bezerro para lugar seguro, em cima do tapadão. Mas estava lá a malta com os candeeiros acesos. Quando o bezerro viu as luzes em cima do tapadão, assustou-se e começou a fugir, comigo agarrado, tapadão abaixo. Se não me atiro com ele para o lado do tapadão oposto ao Tejo, tinha que o largar e já nunca mais o conseguia agarrar. Fiquei com água pela cintura, mas sempre agarrado a ele. Quando se apanhou com água calma e comigo agarrado, o animal amansou e consegui salvá-lo. Vim com ele à mão e pu-lo em terreno a descoberto, para um sítio onde outros já tinham feito o mesmo, porque estavam lá mulas e carroças. Amarrei o bezerro a uma carroça e lá ficou sossegado.

As cheias eram para nós uma coisa terrível. De noite a gente nunca sabia se estava bem. Uma vez no Patacão de Baixo uma barraca foi por água abaixo. A cheia arrastou-a, mas já lá não estavam pessoas. Eram meus familiares. Às vezes as águas estavam lá por mais de uma semana. Depois desciam e tornavam a subir. Nunca estávamos descansados. Nessa altura não havia bombeiros com barcos, e por isso ninguém podia lá chegar. Só podíamos contar com a gente. Estávamos entregues à nossa sorte. Quem tinham os barcos éramos nós. Eram semanas e semanas de desassossego.

Nessas alturas não se podia pescar, pelo que a gente não podia fazer nada. Quando as águas começavam a subir, empoleiravam-se as coisas e os apetrechos nas casas para não se perderem. No sítio onde tinha a barraca, com outras, a água era branda quando estava de cheia. Mas para as barracas que ficavam no meio do Tejo, essa malta tinha logo que sair porque era muito perigoso e tinham que vir para o barracão do Lico, que era seguro. Essas barracas ainda hoje lá estão e são uma boa memória desses tempos. Era de meter medo ficar numa barraca assente não em cima de pilares, mas em cima de esteios, sem mais nada, sujeita a ir por água abaixo de um momento para o outro. Via-se a água a correr em baixo com uma grande velocidade e tinha-se a ideia que se fosse abaixo a gente acabava ali. Por isso, quando sabíamos que a água ia subir, jogávamos pelo seguro: púnhamos as nossas coisas penduradas na casa e a gente is para o barracão do Lico que era um bom sítio e estávamos seguros.

Houve três casas que arderam. Uma delas era do meu sogro, outra de um primo meu e outra que era do João  Fernandes. Estavam todas da parte de cima da aldeia do Patacão. Arderam todas, e as outras também foram  atingidas mas não arderam de todo. Os bombeiros foram lá mas nada puderam fazer. As casas foram incendiadas  por maldade, pelo novo dono do terreno, que era do Lico. As casas ficavam dentro do terreno mas eram dos  pescadores, porque o antigo dono as tinha vendido. Este queria apanhar aquele pequeno bocado de terra e não  admitia que os pescadores estivessem ali. Foi por malvadez que deitou fogo às casas. Os pescadores não se  mexeram e as coisas ficaram por ali. Foi uma pena porque se perderam casas de pessoas e que faziam parte da  nossa aldeia. Esses pescadores tiveram grandes prejuízos e nunca foram recompensados.

As nossas barracas eram simples: tinham uma sala pequena e dois quartitos. A cozinha ficava cá fora e era onde  tínhamos as coisas para cozinhar, onde fazíamos as refeições e tínhamos os barris da água-pé e algum azeite. As  latrinas também eram fora das casas.

Só há memória de que um casal se tenha divorciado. Nós nunca falamos em divorciados: dizemos que eles se deixaram. Foi o Zé Fernandes, o velho, que era barqueiro e que era avô do meu genro.

No Patacão havia uma passagem de barco entre as margens do Tejo. Fazia-se a passagem dos ranchos, do Patacão de Alpiarça para Vale de Figueira. Isso acontecia mais quando vinham aqueles ranchos dos gaibéus, para trabalhar aqui em Alpiarça, era lá que eles passavam.

O Zé Fernandes cobrava nessa altura vinte e cinco tostões a cada pessoa pela passagem. Quem quisesse podia fazer ali a travessia do rio. Se houvesse alguém da outra banda do Tejo, chamava alto pelo barqueiro, ele ouvia e ia buscar essa pessoa. As únicas pontes que haviam aqui era a da Chamusca, a de Santarém e a do comboio, em Praia do Ribatejo.

NOTA: Bastante agradecemos ao Renato Monteiro, possuidor de um extraordinário portfólio fotográfico sobre os Avieiros, a possibilidade de publicarmos as fotos que acompanham o texto. Elas são de sua autoria.

pedaços da memória de um pescador avieiro do patacão -I


por amabilidade da comissão coordenadora do projecto da cultura avieira a património nacional

FOLHA INFORMATIVA Nº 36/2009

PEDAÇOS DE MEMÓRIA DE UM PESCADOR AVIEIRO DO PATACÃO  –  I

(transcrição integral de memórias – sem revisão de texto)

Este trabalho resulta de um conjunto de entrevistas ao pescador Avieiro de seu nome António Gerónimo da Silva, uma das quais, a que agora publicamos, foi realizada em 24 de Novembro de 2006. Nessa altura o Sr. Gerónimo ainda pescava no Patacão, aldeia Avieira do concelho de Alpiarça. Era o último pescador Avieiro do Patacão. No ano de 2007 o Sr. Gerónimo deixou de pescar. Por isso hoje não há pescadores Avieiros a exercer a sua actividade de pesca no Patacão.

As entrevistas foram as primeiras de uma longa série feitas a vários membros da comunidade Avieira do Tejo, no âmbito de um projecto de pesquisa, que será concretizado num livro sobre a religiosidade popular dos Avieiros.

O livro está concluído e vai ser publicado e apresentado na cidade de Santarém no dia 12 de Dezembro de 2009. Terá por título A Reconstrução do Sagrado. Religião Popular nos Avieiros da Borda-d’água.

Esta entrevista vai ser subdividida, sendo publicada em duas partes. Para os pesquisadores e para os que se interessam pela cultura Avieira, este é um documento que testemunha uma maneira peculiar de viver.

Memórias de um Avieiro: António Gerónimo da Silva – I

Uma das formas de subsistência dos Avieiros do Patacão, nas décadas de cinquenta e  sessenta era o aluguer de barracas a pessoas que iam de Alpiarça de veraneio por  períodos de uma semana a quinze dias, na altura do Verão. Quando as barracas eram  alugadas, os pescadores que as alugavam dormiam na praia. Como era no Verão,  aproveitavam as noites para pescar usando os barcos, e dormiam de dia, nos barcos.

Quando Gerónimo da Silva casou, a sua casa durante sete anos foi o barco, sempre e  durante todo o ano. Para terem uma barraca para viver, ele e a mulher tiveram que a  construir. Não herdaram dos pais, por estes não terem meios de os ajudar.

Para construir a barraca (palhota), mandaram cortar as madeiras na serração do Júlio  Gameiro, em Alpiarça, e depois construíram-na no Patacão assente em paus de cimento, do tipo palafita. Tal como com as outras barracas, este método de construir dava segurança aos pescadores porque os protegiam das cheias. Ficou localizada no Patacão, junto de um conjunto de outras barracas da aldeia, encostada ao tapadão – paredão localizado ao longo do rio Tejo e obra de engenharia que regula o leito do rio e protege a lezíria contra a destruição das terras que as cheias provocam.

Para a construírem, dizem ter sido tão difícil arranjar dinheiro para os materiais e para a construção, como o foi para arranjar as licenças junto da Câmara Municipal e das outras autoridades. Levantaram-lhes um enorme conjunto de dificuldades para a construção, o que revelava a falta de interesse do Estado na fixação dos pescadores Avieiros em povoados por eles construídos. Conseguiram no entanto as simpatias do engenheiro da quinta da Lagoalva (casa agrícola senhorial), “uma excelente pessoa, que teve o dó, a caridade e a compreensão de nos dar um bocadinho de chão para podermos construir a nossa casa”. No dizer de Gerónimo, o bocado de terra onde lhes foi autorizado construir era pequeno e não estava amanhado. Era terreno onde só havia freixos e salgueiros, tendo eles que desbravá-lo para conseguirem construir.

Em tempos mais recentes, já depois do 25 de Abril, no Casal do Leão, no concelho de Alpiarça, o dono dos terrenos aborreceu-se com os pescadores, e deitou fogo a três barracas, tendo-as destruído completamente. Razões para tal acto: “porque ele quis”. Pensa-se no entanto que o que queria era aproveitar aquele pequeno pedaço de terreno onde estavam as barracas dos Avieiros, para poder estender a área das suas searas, expulsando ao mesmo tempo os pescadores dali.

Hoje a aldeia do Patacão está abandonada, apesar das promessas da autarquia de salvar o património histórico e transformar as casas dos Avieiros num aldeamento turístico, proporcionando ao mesmo tempo a salvaguarda da memória dos antigos pescadores.

Gerónimo nasceu em 1933, tem 73 anos [na altura da entrevista], e ainda pescava no início do ano de 2006. Na pesca fazia equipa com a esposa. Era ela que remava e conduzia o barco para os pesqueiros. Era ele que largava a rede e que depois a recolhia enquanto a mulher manobrava o barco. Um problema com cataratas na vista, surgido recentemente, obrigou-o a ficar em casa. Já não sai agora para a pesca. Tem consulta marcada para a vista, no Centro de Saúde de Alpiarça, mas já foi informado que o tempo de espera de uma operação pode ir até três anos. Esta doença inesperada e a falta de perspectiva para a operação tiraram-lhe a motivação para ir ao Tejo e o pescador Gerónimo tem dias de evidente depressão nervosa. A esposa também está pessimista: “Se calhar, alvitra, quando a operação ao olho for marcada, já ele cá não está entre nós”.

Apesar de já não pescar, Gerónimo mantém o seu barco operacional no Tejo. Está tão desanimado por causa do problema com a vista que não acredita poder voltar a usá-lo.

Gerónimo viveu sempre da pesca até ao dia em que o sável começou a desaparecer do Tejo e, com ele, o meio de sustento dos pescadores Avieiros. Dedicou-se ao cultivo da terra. No início da década de setenta do século vinte, tornou-se seareiro de melão e tomate, em terras da lezíria, arrendadas aos proprietários. E nessa altura deixou de pescar por não lhe sobrar tempo para tal. As searas tomavam-lhe o tempo todo.

Quando casaram passavam os dias a trabalhar. O descanso era raro. Não tinham horas determinadas para fazer as tarefas, tendo noites em que tampouco se deitavam. Tudo dependia do rio e da sorte, ou da falta dela, em apanhar peixe.

De Inverno pescava-se quase sempre de dia. Mas no Verão pescava-se de noite. No início da década de sessenta, em 1961, quando a filha do casal ainda só tinha oito meses, chegaram a ir pescar junto à ponte da Chamusca, idos da Barquinha. Faziam duas viagens de barco num só dia para depois ainda terem tempo de ir vender o pescado no Entroncamento. Pescavam de noite. De manhã, enquanto a mulher ia vender o peixe – fataça, barbo, saboga e sável – o marido ficava a arrumar a rede e a preparar tudo para a pescaria seguinte. A parte da tarde, quando a mulher voltava da venda e o homem tinha as artes já preparadas para a pescaria seguinte, era guardada para dormir e descansar o que se pudesse. A mulher, para além de vender o peixe, geria as contas da família. Devido à dureza de dias consecutivos na faina, por vezes a mulher tinha dificuldades em remar, havendo memória do da enorme fadiga que sentia no banco de remos, quando queria conduzir o barco para os pesqueiros. Por vezes, quando de noite se dirigiam para os pesqueiros, pedia ao marido para descansar um pouco no fundo do barco, “nem que fossem cinco minutos. Estava mortinha com tanto sono que nem me conseguia agarrar, mesmo estando sentada no banco de remos”. Mas logo se lembravam que o sol estava para nascer e que se arriscavam a perder a melhor hora do dia para a pescaria, que é aquela em que o sol nasce. Era essa lembrança que a obrigava a pegar nos remos, a chapinhar a cara com água, e a retomar as remadas para se dirigir para os pesqueiros, antes que o sol se levantasse.

Nessa altura, o casal ainda não tinha a sua barraca construída no Patacão.  Viviam dentro do  barco, com  a filha. Os cuidados com a criança eram tidos  dentro do barco. Era lá que a mãe a  amamentava e a lavava.  “Lavava-a com  água do Tejo, mudava-lhe a fralda, lavava as fraldas  sujas no Tejo e, graças a  Deus,  consegui criá-la. Levava-a comigo para o Entroncamento, para  a  venda, dava-se bem com todos,  nunca deu problemas, e hoje é uma mulher,  que está bem, e  de quem tenho orgulho”.

Por essa altura tinham o barco atracado num trecho do Tejo perto da  Barquinha, por ser lá que  podiam  apanhar mais peixe e o podiam ir vender num  bom mercado como era o do  Entroncamento, devido à  proximidade e ao  número elevado de pessoas que compravam peixe,  em especial funcionários  dos  caminhos-de-ferro e operários.

Recordam que era ainda comum a muitos casais de Avieiros viverem em  barcos, no decorrer da década de sessenta do século vinte, havendo memória  de alguns passarem a noite de casamento no barco.

Passaram os Avieiros do Patacão tempos muito difíceis. Viram “a morte à frente dos olhos” algumas vezes. Numa delas, depois de uma dia e de uma noite de água, a chover e sempre a chover, obrigados a ficar dentro do barco debaixo do toldo, as ondas que se levantaram no Tejo eram tão altas que por pouco o barco não se virou. Foi tão grande a aflição e o perigo, que ainda hoje recordam o acontecimento.

O toldo tapava mais de meio barco, ficando somente destapada uma parte da ré. Nas alturas de grandes temporais, nem sempre o toldo era uma protecção. Gerónimo recorda que se deitou muitas noites mais molhado do que enxuto, em cima de uma esteira, feita por ele, e que era nessa altura o seu colchão, no fundo do barco e debaixo do toldo.

Os avós de Gerónimo vieram de Vieira de Leiria. Não se recorda se o seu pai também veio de lá, ou se terá já nascido em Alpiarça. O pai de Gerónimo era Francisco da Silva e a mãe era Bernardina Gerónimo. Na altura em vieram já tinham familiares estabelecidos na zona, nomeadamente na Palhota, em Valada, no Escaroupim e nas Caneiras. Tinha tios em Valada e a avó materna também lá vivia. Na Palhota vivia o José Broa, seu cunhado – na altura estava lá estabelecido com um café. “Foi uma altura boa na Palhota, só que depois o peixe começou a faltar e tiveram que abalar lá para baixo, para Vila Franca. A pouco e pouco foram saindo de lá, até que a Palhota ficou abandonada”.

Gerónimo fez uma sociedade de pesca com o cunhado. Para além da pesca, o cunhado mandou fazer um barco grande para a extracção de areia e Gerónimo trabalhou também nesta actividade, não como sócio do cunhado mas como empregado. Depois de Gerónimo ter regressado a Alpiarça, o cunhado continuou com a actividade e chegou mesmo a comprar uma máquina para tirar a areia do Tejo e a vender aos construtores.

Na altura em que o sável começou a faltar, já no princípio da década de setenta, os pescadores de Alpiarça optaram por ir pescar para Vila Franca. Deslocavam-se para lá nos seus barcos. Assim, conseguiam pescar alguma coisa. Se o não fizessem, devido à escassez, o sável era quase todo apanhado em Vila Franca e pouco chegava a Alpiarça. Foi na altura em que não havia barragens e o Tejo quase secava. Quando o peixe queria subir o rio, encontrava as redes dos pescadores de Vila Franca e poucos conseguiam subir. Com a falta de sável, a actividade dos pescadores praticamente acabou, tendo a aldeia do Patacão sido abandonada.

No entanto, parece que agora o sável está de novo a voltar devido à diminuição da poluição do rio, porque o sável é um peixe muito sensível às águas poluídas.

Também se apanhava lampreia, sempre se apanhou, nunca desapareceu. É hoje mais cara. Antigamente vendia-se por cem escudos, mas há dois anos vendia-se a doze contos (sessenta euros). Em relação ao nível de vida do passado, a lampreia vale hoje muito mais. Os pescadores que pescam lampreias têm hoje a garantia que as vendem todas e que os preços são compensadores.

Código de pesca: cada família do Patacão fazia as suas pescarias sem interferir com as outras. Mas não era diferente das Caneiras ou de outras aldeias piscatórias. Na altura da pesca do sável, por haver muitos pescadores, tinha que se respeitar a vez de chegada aos pesqueiros. Nas Caneiras havia mesmo um código de conduta na pesca, respeitado por todos os pescadores.

Métodos de pesca – um deles, para a pesca do sável, é o de lançar a rede e de a acompanhar pelo Tejo abaixo, durante cerca de 500 metros ou mais. A rede vai estendida na água, mas vai a pescar e o pescador vai a acompanhá-la. Numa das extremidades a rede tem uma bóia, onde é fixada uma lanterna para poder ser vista de noite. A outra extremidade da rede está presa ao barco. À medida que os sáveis vão subindo, vão ficando presos na rede.

Outro método, para a pesca da fataça, consiste em largar o lanço e dar batidas na água para que o peixe entre na rede e possa ser capturado. Um barco é suficiente para estes tipos de sortes, sendo que se torna necessário haver um mestre e um ajudante. Dois pescadores no mesmo barco é o ideal. Foi por isso natural que o casal se associasse nesta actividade, para a vida.

“Numa altura andei à sociedade com o pai do meu genro e tinha um comprador regular para as nossas pescarias, por junto”. “Chamávamos a este tipo de sociedade «amarração», porque embora pescássemos os dois nos nossos barcos, o produto era vendido todo junto e o dinheiro era dividido em partes iguais pelos dois. Nessa altura já os nossos barcos tinham motor, já não andávamos a remos. Foi há pouco tempo, já no fim de velho, há cerca de 20 anos atrás, devia ter 53 anos”.

“Pescávamos nessa altura numa área do Tejo que ia do Patacão até à Torrinha, até antes de termos motor no barco”.

“Na altura em que vivíamos no barco, durante aqueles sete anos, não era só trabalho. Às vezes também nos divertíamos. Quando casámos, fazíamos bailes no Patacão. Eu falava com o tocador de concertina para ir lá tocar e fazer bailes. Um deles era o Zé dos Riachos, outro o Manuel Lázaro e outro o Fernando de Vale de Cavalos. Os bailes eram feitos no terreiro, junto aos salgueiros e depois eram junto das barracas. Falava-se ao tocador, ele ia lá tocar a concertina e depois tínhamos que lhe pagar. Fazíamos um peditório entre todos e assim arranjávamos o dinheiro. Era assim que tínhamos que nos desenrascar. Ainda cheguei a ficar empenhado algumas vezes, eu e os camaradas da minha idade, que combinávamos organizar os bailes. Faziam-se bailes pelo Natal e pelo Ano Novo, mais um ou outro pelo Verão”.

“Não fazíamos no Patacão nenhuma festa anual. Na altura da festa das vindimas em Alpiarça, sempre em Setembro, nós vínhamos assistir e divertir-nos um pouco”.

“A nossa vida era feita no Patacão, mas para comprar algumas coisas e tratar de alguns assuntos, vínhamos a Alpiarça. A distância entre a aldeia e a vila era de 5 Km. Era uma hora de caminho a pé, porque não tínhamos transporte”.

“Íamos à missa poucas vezes, tanto os homens como as mulheres. Mas éramos todos católicos. Acreditávamos e acreditamos em Deus. Não íamos à missa porque morávamos muito longe e não tínhamos transportes. O padre não se deslocava à aldeia.

Casei em Alpiarça, aqui na Igreja. A festa do casamento foi feita no Patacão e o local escolhido para a boda foi um largo debaixo de uma figueira, no Verão. Comemos, bebemos e dançámos. Comemos, e bebemos ainda mais. Era melhor nessa altura do que eu vejo que é hoje. O comer do casamento era cozido à Portuguesa e era guisado de carne. Quando a carne se acabou, alguns tiveram que ir ao malagueiro para apanhar peixe. Havia lá muitos pampos, apanharam-nos e cozinharam-nos. Foi assim que deu para o jantar do casamento e depois para o almoço do dia seguinte. No casamento havia três refeições, almoço e jantar no dia e almoço no dia seguinte. Esse almoço foi uma caldeirada de pampos. A carne foi comida no casamento porque era uma altura especial. No dia-a-dia comia-se praticamente só peixe”.

“Também se fazia criação de alguns carneiros, porcos e galinhas, para comer em ocasiões especiais, como no casamento. Para além dos pratos já ditos, havia arroz-doce. Não se faziam outros bolos”.

“O nosso comer do dia-a-dia era peixe. Fazíamos peixe de caldeirada, e também migas para acompanhar. As migas são uma sopa feita de peixe, pão de milho e pão de trigo misturado. Para a fazer cozemos o peixe e temperamos com sal. Deitamos as batatas a cozer. Depois de o peixe estar cozido, tiramos da panela e deixamos as batatas até ficarem cozidas. Numa tigela pomos o pão e deitamos o caldo do peixe até ensopar, juntando azeite. Quando havia coentros ou hortelã também acrescentávamos para dar gosto à miga. O prato era acompanhado com um bocadinho de vinho. Não comíamos o peixe cozido sem mais nada, tinha sempre que levar um tempero. Por exemplo, cozíamos o peixe com sal e depois comíamos com azeite, vinagre, pimenta e cebola”…

…“mas também fazíamos peixe assado e frito”.

“Os peixes cozinhados eram os que o Tejo dava: fataça, saboga, barbo, boga, sável e pampo. Era muito importante deitar-lhes sal antes de cozinhar para o peixe tomar o gosto do sal. Chamamos a este cozinhado «peixe de água-e-sal». O meu sogro gostava muito de peixe de água-e-sal. Chegávamos a pescar os dois à fragua, de Inverno, de dia. É uma pesca em que a gente lança as redes, os tremalhos, mesmo junto à margem, encostadas aos salgueiros. O tremalho deve ter entre 25 e 30 metros. Depois de lançar, cercávamos o lanço, isto é dávamos a volta à rede de roda dos salgueiros. Depois, com uma vara de fragua, com uma maceta à ponta, batíamos na água, junto da lenha das raízes dos salgueiros e fazíamos barulho para embalar o peixe para dentro da rede de tremalho. Chamamos a isso fraguar. O meu braço está hoje aleijado e se calhar é por causa disso, porque era eu que tinha que andar a fraguar e isso dá muitas dores nos braços. Por ter que andar aos remos e depois ter que fraguar durante muitos anos, deu-me esta dor que tenho no braço. Antes queria andar à ré do que queria andar a remos, porque era mais fácil. Eu fazia isto com o meu parente.

O meu parente gostava muito daquele cozinhado.

Eu perguntava-lhe: Oh Zé, o que será hoje o almoço?

Respondia: Hoje é bogas… de água-e-sal.

Dizia-lhe: não queres assadas?

– Não. Quero de água-e-sal.

– Pronto. Tu é que mandas…

Era uma bogazinha boa, que podia ser assada, mas ele só queria cozida daquela maneira. Cozia-se, deitava-se sal, depois levava um fio de azeite por cima, vinagre, cebola, pimenta, e estava feito.

“Era peixe cozido sem mais acompanhamentos. Era apanhar, amanhar, cozinhar, pôr sal e condimentos e comer… mas com vinho a acompanhar! Isso não falhava. E então ele… era cá um castigo para beber vinho…!

O vinho era água-pé que a gente fazia. Como é que a fazíamos? Por graça dizia-se que era das nossas propriedades. Mas a gente não tinha terra. Íamos ao rabisco das uvas, os restos que não eram apanhados nas vindimas e fazíamos assim o nosso vinho. Era fraco, era água-pé, mas dava para encher o garrafão de cinco litros para aqueles almoços, para os dois… e deixa estar que ele não se perdia”.

“A gente ia de manhã para a pesca, depois cozinhávamos e chegávamos ali por volta da meia-noite… então acabávamos. E deixa que o garrafão não ficava com nada.

Era o vinho do rabisco, toda a gente fazia vinho de rabisco, e nessa altura não era como agora. Uma vez, em que andava a trabalhar num tomatal que era da fábrica, lá no Mouchão dos Coelhos, com um primo meu, no primeiro ano em que fiz seara de melão, num ano de que já não me lembro, a gente tinha também um meloal nosso. O tomate apanhado tanto ia para a fábrica de Almeirim como ia para a Chamusca. Os carros carregaram o tomate e levaram o frete para cima e à vinda para baixo tornavam a carregar e iam para a fábrica de Almeirim. A gente esperou pelo carro num desses dias, à tarde e a uma hora combinada, para carregar o carro para vir para baixo para a fábrica. Nessa altura havia muito tomate desperdiçado, não ia para a fábrica por não ter qualidade, e que era aproveitado para dar de comer aos porcos. Eu levava um saco de plástico que era para trazer o desperdício de tomate para dar aos porcos, depois de ter carregado o carro. Assim foi. Quando íamos para o local combinado, por sorte vinham dois guardas republicanos de bicicleta, pela estrada do Mouchão, e viram-nos. Quando chegaram ao pé da gente, mandaram parar a gente. Íamos de bicicleta, como eles. Olharam para o saco que eu levava atrás, no suporte da bicicleta. Perguntaram:

– “Para que são esses sacos que vocês aí levam”? – lá explicámos para que eram. E disseram:

– “Este tomate que vocês querem ir buscar… é outro tipo de tomate. É outro!”

Começaram a tomar apontamentos, e depois disseram:

– “Vocês iam para ir às uvas não era?”

– “Se os senhores quiserem confirmar, venham com a gente para ver e perguntem lá para confirmar…”

– “Estejam mas é amanhã às nove horas no posto da Chamusca!”

– “Oh senhores!, mas informem-se da chegada de um carro que está para carregar de tomate e vão ver que nós íamos lá para carregá-lo, para a fábrica de Almeirim…”

– “Não temos nada que perguntar!”

“No outro dia fomos para o posto da GNR da Chamusca e tivemos que lá ficar todo o dia presos. O meu primo levou uns valentes papos e a mim ainda me ofereceram mas nada me fizeram.

Disse-lhes: – “se quiserem bater, batam!”

– “Olha que o teu camarada já confessou!”

– “Mas confessou o quê? O que é que o meu camarada confessou? Não tem nada que confessar. O que é que vai confessar de uma coisa que não fez?”

– “Eh pá, vocês digam que iam buscar uns cachos de uvas!”

– “Mas para que é que eu vou dizer uma coisa que não ia fazer?”

– “Eh pá, digam agora, pagam a multa de oitenta mil e quinhentos [oitenta escudos e cinquenta centavos, na moeda antiga] e vão-se embora!”

Continuaram a ateimar e eu comecei a ficar chateado. Então disse-lhes: “pois se dizem que eu ia às uvas, então eu ia às uvas. Façam o que quiserem mas não me chateiem mais.”

– “Ai é? Então agora vais mas é pagar cento e sessenta e um!”

– “Então disseram que era oitenta mil e quinhentos e agora são cento e sessenta e um?”

– “É para aprenderes!”…

Eles faziam tudo o que queriam, gozavam com as pessoas como muito bem entendiam.

… Nessa altura ainda pescava, mas também fazia seara de melão e trabalhava na apanha do tomate para a fábrica de Almeirim. Foi antes do 25 de Abril, no princípio dos anos setenta…”

NOTA: A primeira foto desta Folha Informativa é do Sr. Gerónimo num dos seus últimos dias de pesca. Foi registada pelo nosso amigo Paulo Barreiros, fotógrafo amador de enorme mérito e ao qual agradecemos a cedência para publicação. Esta foto foi escolhida pelos organizadores do projecto para figurar como cabeçalho das primeiras Folhas Informativas e como logótipo do 1º Encontro Nacional da Cultura Avieira.