“Os olhos já são – o ter é coisa de quem anda vazio'”
Marcos Meira
(ria de aveiro; torreira)
o meu amigo ti zé costeira
nos últimos anos
caminhava pesado até à bateira
a cana de pesca bengala
remava atá ao meio da ria
voltava com algum peixe para o almoço
os dias repetiam-se e ele dentro deles
dentro do silêncio dentro da bateira
na ria
primeiro arrumou a bateira
cobriu-a com plástico
depois morreu a mulher
o plástico começou a rasgar-se
e ele
falei-lhe quando já não era
mostrou-me a casa os troféus
contou-se por momentos
viveu
não sei como estará numa casa
entre quatro paredes auxiliares
refeições certas medicação a horas
um sofá a cama o silêncio os outros
onde a ria?
eu vejo-o sempre lá no meio
a dar vida às águas mortas
(torreira; 2015)
a palavra que não quero
espero a palavra
por dentro das palavras
o sorriso demora a regressar
o tempo é nublado muito
não te perdoo o deserto
nem a lama que semeaste
a imagem só é a mesma
para os mesmos olhos
espero a palavra
por dentro das palavras
e não a quero
(ria de aveiro; torreira)
o lixo debaixo do tapete
lê tudo ao contrário
as horas da beleza
não são as únicas
horas da realidade
procura os homens
pergunta-lhes o como
quando e para quê
são eles o teu relógio
procura-os nas horas más
esconderam o lixo
por debaixo do tapete
na ilusão de terem limpo a casa
não sejam os teus olhos
tapete novo em chão gasto
dou-te a carne dos dias
para que sintas na boca o sangue
dos que os habitam
reparte-a
(torreira; cais do guedes; verão, 2015)