postais da ria (106)


ser pescador aqui

henrique brandão com um saco de 20kg de berbigão

henrique brandão com um saco de 20kg de berbigão

aqui
pescador é operário
em fábrica onde água
é chão

aqui
pescador é escravo
de quem dizem ser
patrão

apanhar, cirandar, escolher, ensacar, levar ao intermediário - circuito do berbigão

apanhar, cirandar, escolher, ensacar, levar ao intermediário – circuito do berbigão

(torreira; berbigão)

postais da ria (105)


o meu amigo ti zé costeira

a bateira do ti zé costeira

a bateira do ti zé costeira

nos últimos anos
caminhava pesado até à bateira
a cana de pesca bengala
remava atá ao meio da ria
voltava com algum peixe para o almoço

os dias repetiam-se e ele dentro deles
dentro do silêncio dentro da bateira
na ria

primeiro arrumou a bateira
cobriu-a com plástico
depois morreu a mulher
o plástico começou a rasgar-se
e ele

falei-lhe quando já não era
mostrou-me a casa os troféus
contou-se por momentos
viveu

não sei como estará numa casa
entre quatro paredes auxiliares
refeições certas medicação a horas
um sofá a cama o silêncio os outros

onde a ria?
eu vejo-o sempre lá no meio
a dar vida às águas mortas

a bateira do ti zé costeira

a bateira do ti zé costeira

(torreira; 2015)

postais da ria (102)


a palavra que não quero

os contrastes são claros

os contrastes são claros

espero a palavra
por dentro das palavras

o sorriso demora a regressar
o tempo é nublado muito

não te perdoo o deserto
nem a lama que semeaste

a imagem só é a mesma
para os mesmos olhos

espero a palavra
por dentro das palavras
e não a quero

faço as horas e os dias

faço as horas e os dias

(ria de aveiro; torreira)

postais da ria (97)


o lixo debaixo do tapete

não é fácil trabalhar aqui

não é fácil trabalhar aqui

lê tudo ao contrário
as horas da beleza
não são as únicas
horas da realidade

procura os homens
pergunta-lhes o como
quando e para quê
são eles o teu relógio
procura-os nas horas más

esconderam o lixo
por debaixo do tapete
na ilusão de terem limpo a casa
não sejam os teus olhos
tapete novo em chão gasto

dou-te a carne dos dias
para que sintas na boca o sangue
dos que os habitam

reparte-a

o meu amigo aú vai amarrar a bateira

o meu amigo aú vai amarrar a bateira

(torreira; cais do guedes; verão, 2015)