falta-me o ar


o fazer do sal na morraceira, figueira da foz

o fazer do sal na morraceira, figueira da foz

 

publicada em 2012, na quetzal, com uma tiragem de 1.500 exemplares, a “Poesia Reunida” de Maria do Rosário Pedreira, tem sido para mim uma obra obra de leitura desgastante e ainda não concluída; por um motivo simples: a cada poema falta-me o ar.

 

a emoção escreve-se pela mão da autora, sente-se, respira-se, sufoca-se de tanta. a simplicidade da escrita, tão difícil de conseguir, torna-a acessível a quem sabe ler em português e sentir em qualquer língua.

 

há muitos, muitos anos, desde eugénio de andrade, que não encontrava uma poética assim: deslumbrante de tão nossa, tão …. porque não fui eu a escrever?

 

num país de poetas – veja-se o quantos no face …. – interrogo-me: como é que uma obra destas, com uma tiragem tão reduzida e já quase com um ano de edição, ainda não esgotou?

 

do deslumbramento que tem sido caminhar pela poesia de maria do rosário pedreira, com falta de ar, claro, aqui fica um momento de sufoco:

 

 

A Criação do Mundo

Olhou as mãos em concha e viu arredondar-se

um sonho dentro delas – um mundo

que ninguém podia adivinhar, pois dele

fariam também parte os magos e os profetas.

 

Abriu-as devagar e deixou cair as trevas como sementes,

para que então servissem unicamente de sombras

e prolongassem a memória das coisas por vir. Foi assim

que inventou a luz e separou um dia do seguinte.

 

Depois afastou o céu daquilo que viria a ser o mar,

como quem divide um lenço azul em dois e limpa

as lágrimas apenas a metade. No meio, deixou que

crescesse tudo quanto do chão quisesse escapar-se

para traçar a primeira geografia dos caminhos. E assim

 

descobriu a cor e encheu a sua paleta de animais

que rasgariam os céus, cruzariam os oceanos e

revolveriam as entranhas da terra na estação

das chuvas. Por fim, semeou pequenas clareiras

 

nas florestas, pedras nas vertentes das cordilheiras,

cristais de neve no contorno dos lagos, estrelas cadentes

na vizinhança do desespero e rios serpenteantes

entre as searas louras, mordidas por um sol que lhe caiu

quase sem querer dos dedos, mas lhes aproveitou o calor.

 

E, apesar da alegria que experimentou, sentiu que o seu

mundo era tão frágil que, se desviasse os olhos, tudo acabaria

por regressar ao pó, às trevas e ao verbo. Só por isso criou alguém

que também o visse e lhe dissesse todos os dias como era belo.

 

Maria do Rosário Pedreira  em “O Canto do Vento nos Ciprestes” e “Poesia Reunida”, Quetzal 2012”