denúncia


um país por dentro do país
um povo por dentro do povo
um silêncio

são os que nunca partiram
ou se o fizeram
regressaram porque a terra
à terra torna
e eles são a terra da terra

existem mas são estranhos
aos grandes números
são minuciosos nas pequenas coisas
vivem delas e com elas

se existe beleza naquilo que são
maior seria
a beleza de serem aquilo que lhes negam
porquê hoje ainda assim?

sou cada dia mais estrangeiro
no meu país

(palavras para um vídeo de Jorge Bacelar)

ainda há sol


xávega: o arribar da mão de barca

xávega: o arribar da mão de barca

não sei que te diga hoje
senão o inventar de mais um dia
em que tu e eu fomos
memórias muitas nossas onde?

semeámos os dias de nós
semeaste-me de ti

caminhas agora a meu lado
e sou eu quem te dá a mão
te ensino o por onde
te digo o como

vem
ainda há sol e caminho
para andar
(torreira; companha do marco; 2011)

o arribar da mão de barca

os afectos e as malhas


o agostinho e o porfio a fechar o saco

o agostinho e o porfio a fechar o saco

mandei escrever no braço
o amor por ti
não esqueço
nunca esquecerei
és-me enquanto me for
eu aqui pescador

tece o tempo
as malhas que os afectos
acolhem

malhas largas
os deixam ir sem saudades de
outras miúdas são
nelas se guardam os mais caros
os mais perto do coração

quem amiúda
as malhas alargadas?

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(torreira; companha do marco; 2011)

sou mais um


um por todos e todos

um por todos e todos

do muito andado
ficou o ser daqui
sem aqui ter nascido
que é esta a terra onde as raízes
mergulham

é esta a minha gente

o sangue que me correr nas veias
enquanto
carreia sal destas águas
e das outras onde tudo começou

ser eu deles
serem eles de mim
sentimos alguns
sentimos muitos
sentimos os que

por isso me dói
tudo e tanto
por isso não assisto
sou mais um

(ria de aveiro; torreira; corrida de chinchorros; s paio 2014)

antevisão da ria


ensurdecedor este silâncio

ensurdecedor este silêncio

“a ria está morta. não vejo bateiras”
(palavras de meu pai no verão de 2014)

estou vivo e assisto

tudo tem o seu tempo
não descontando o tempo
que os homens ao tempo roubaram

o que foi não voltará a ser
haja quantos programas inventem
mataram e deixam morrer

vendilhões de um templo outro
vendem-se e vendem os que ainda não
pantomineiros de um futuro inexistente

estou vivo e assisto

as palavras são apenas isso
palavras
as imagens a denúncia insuficiente
a beleza
ilusão para quem não tem outra memória

já é pouca a vida que resta
ao que resta de ter havido

a solidão ameaça os dias
depois de todos terem partido

estou vivo
mas não para isto

(ria de aveiro; torreira)

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