o desígnio


conquistar os dias
um a um
vencer-se
para vencer
erguer-se

falo de homens
dos que muitos
a bordo de barcos nasceram
neles foram criados
e homens se fizeram
 
falo de moliceiros
nome dos homens
e dos barcos
que ambos se confundem
na labuta e no tempo
 
conquistar o futuro
sendo no presente
esse o desígnio

(regata da ria; 2011)

o moliceiro é bandeira


à vara ou à vela, são dois dos modos de impulsão mais vulgares do moliceiro
unem-se os homens
dão-se as mãos
fazem-se nós
limpa-se a sombra
renasce-se

o moliceiro
é bandeira
amor paixão
modo de vida foi
de memórias pleno
mais que eles
é todos os que antes o foram

uniram-se os homens
cuidem-se os que
ti zé rebeço, um homem da ria, a ria feita homem

pergunta estúpida?


escuta
ouves o rumor das águas
o quebrar das ondas
no casco
as velas pandas batendo
de tanto vento

o vento sopra do norte
o barco voa
a meta está próxima
chega em primeiro
ganhou a regata
 
depois
depois houve que o vender
os apoios não chegavam
para o manter
 
depois
depois não querem que haja regatas
 
é esta a história
de como os moliceiros
por falta de apoio
vão desaparecendo
 
por vezes pergunto-me
porque é que no brasil em vez
de casas tradicionais portuguesas
não construíram moliceiros

(regata da ria; 2010)

como se descarregava o moliço no bico


dos moliceiros e do moliço

até meados da década de 60 do século passado, os montes de moliço cobriam todo cais do bico.

segundo os dados coligidos pelo comandante rocha e cunha, no livro " notícia sôbre as indústrias marítimas na área da jurisdição da capitania do pôrto de aveiro" (1938, gráfica aveirense)

" .... em 1938 existiam na ria 1750 moliceiros, que rendiam 3.600.000$00.

pesca lagunar no mesmo ano:

nº de pescadores- 1.255; nº de redes - 1.354; rendimento - 1.981.582$00."

percebe-se assim a importância que o moliço tinha na economia da ria de aveiro.

era tal a quantidade apanhada que houve que estabelecer um período de defeso, correspondente ao da desova e criação dos peixes que escolhiam a ria como maternidade.

da memória

da ilha do amoroso, uma das três grandes ilhas existentes na ria de aveiro -- monte farinha, testada e amoroso -, era co-proprietário um tio avô meu (césar cravo, também conhecido por césar gorim), o que me permitiu assistir a uma das mais belas cenas da minha juventude: o pagamento dos moliceiros e mercantéis.

todos os domingos, no fim da missa, com a "roupa de ver a deus", os donos dos barcos dirigiam-se a casa do meu tio avô, que os esperava à porta, na eira, com uma garrafa de vinho fino, um cálice e uma saco de pano. um a um iam chegando e cada um dizia: sr. césar são tantas barcadas de moliço, tantas de arrolado, tantas de junco, o que dá... e o pagamento era feito para dentro do saco e anotado. 

havia dois tipos de moliço: o que era apanhado no fundo e o que andava à superfície da ria (arrolado), tinham preços diferentes, o primeiro era mais caro.

o junco, era apanhado em terra, com gadanhas, e carregado por mercantéis.

ambos serviam para adubo, embora o junco fosse utilizado para fazer a cama dos currais, antes de ser usado como adubo.
 
do bico

nos locais em que não havia cais para descarregar o moliço ele era carregado directamente para os carros de bois, que entravam na água, ou depositado nas praias onde ficava a secar.

um dos instrumentos utilizados para a descarga era a "forquilha", servia para "atirar" o moliço para cima do carro de bois, onde era depois ajeitado pelo comprador. O outro era o "engaço" que servia para puxar o moliço.

um barco carregado tinha feito uma "maré de moliço".

do homem

chama-se josé rebeço, esteve muitos anos emigrado no canadá, depois de abandonar a vida de moliceiro.

de regresso à murtosa, não resistiu a recuperar um moliceiro e, com ele, participar em regatas e recriar o voltar a apanhar moliço. moliço que já não há, o que havia nesse ano era uma alga, a que os pescadores chamam "cabelo de cão". foi essa que o ti zé rebeço apanhou e levou para adubar as suas terras de cultivo

a tripulação normal de um moliceiro é de dois homens mas, sozinho, josé rebeço resolveu o problema recorrendo a um pequeno motor, colocado na beirada do barco.

durante breves instantes o cais do bico remoçou

não queremos que tudo acabe assim


o barco moliceiro, princesa da ria

 

de todos os barcos que sulcaram, ou sulcam ainda, a ria o moliceiro é sem dúvida o mais belo. atrever-me-ia a dizer que é em simultâneo uma obra de arte e um instrumento de trabalho.

perfeitamente adaptado ao trabalho na ria, em que a as águas de pouca profundidade são predominantes, o moliceiro é um barco de fundo chato com um pontal de 40 a 45cm, navegando, quando carregado, com os bordos ao nível da água.

 

o facto de o pontal (distância entre o convés/bordo e o fundo) ser tão pequeno, facilita o trabalho dos moliceiros que, para arrancar o moliço do fundo, arrastavam os ancinhos os quais, depois de carregados tinham de ser erguidos e despejado o moliço dentro do barco. quanto menor o pontal, menor o esforço dispendido.

se na sua construção de base se encontra uma adaptação ao meio onde se move, e ao fim a que se destina, há porém factores que nada tem de utilitário: a forma da bica da proa e os painéis pintados à proa e à proa.

o que é que terá levado a que o moliceiro tenha uma bica da proa tão curva? Tão semelhante à da barca de mar (da arte xávega)? não há qualquer finalidade utilitária nestes pormenores, são puros adornos.

com um comprimento entre 14,50m e 15m (Drª Ana Maria Lopes – Moliceiros : A Memória da Ria) e uma boca entre os 2,50m e os 2,60m, o moliceiro é um barco de linhas esbeltas e extremamente elegantes: uma jovem princesa que se passeava pela ria.

 

é esse o seu encanto, a causa da paixão de todos os que nele trabalharam, passearam ou meramente contemplaram. é impossível ficar indiferente a uma princesa. por amor a ela às regatas todos se entregam, sem contrapartidas que não a emoção.

os moliceiros e apanha do moliço

de acordo com “ Relatório Oficial do Regulamento da Ria”, de que é co-autor o então capitão-tenente jayme affreixo, publicado em 1912, os números relativos à apanha de moliço eram os seguintes:

 

 1.883 …. 1.342 barcos

 1889 …. 1.749 barcos —— 957 moliceiros ——- 2.687 lavradores

 1911 …. . 1.054 barcos —– 875 moliceiros ——- 1.633 lavradores

 

“A estatística de 1.883 dá 158:000$000 réis para o valor anual da colheita ao preço médio de 1$250 réis a barcada.

 

o cálculo do seu rendimento pode fazer-se de acordo com o seguinte modo:

“Existem 1.500 barcos (aos 1.054 registado na capitania acrescenta 400 a 500 não registados), cada um dos quais, nos 3 meses de Agosto, Setembro e Outubro, à razão de uma barcada por dia de trabalho, colhe seguramente 70 barcadas, cujo preço médio não é inferior a 1.$800 réis; e, no resto ano, à razão de uma barcada por 4 ou 5 dias, colhe 30 barcadas ao preço médio de 4$000 réis. Igualando porém este preço ao anterior, para desconto de barcos de lavradores que nesta segunda época não exercem a apanha temos: 1.500 barcos, com 100 cargas cada um, a 1$800 réis, ou seja um rendimento anual de 2.700$000 réis”.

ainda de acordo com o mesmo relatório:

 

“ Em 1907 e 1908 o rendimento total da produção marinha da ria de Aveiro é:

 

Peixe ………. …………………………54.000$000 réis

Peixe de viveiros ………………….……3.000$000 réis

Algas (moliço) valor superior a …….. 270.000$000 réis

Juncos, valo superior a ………. 73.000$000 réis

Total ………………………………… 400.000$000 réis”

 

por aqui se vê o valor que representava o moliço na riqueza produzida pela ria.

câmara de aveiro cancela regata de moliceiros 2012


da esquerda para a direita: miguel matias (proprietário do pardilhoense), joaquim ligeiro (moliceiro), zé rito (mestre construtor de barcos e moliceiro); zé rebeço (moliceiro), zé oliveira (pintor), necas lamarão (pintor e pai de zé oliveira), emanuel oliveira (pintor), manuel valas (moliceiro)

indignação hoje na torreira

todos os anos realiza-se a maior regata de moliceiros da ria de aveiro, ligando a torreira a aveiro, patrocinada pela câmara municipal de aveiro, integrando a “festa da ria”.

este ano foi marcada para o próximo dia 14 de julho e todos, os cada vez menos, proprietários de barcos moliceiros, iniciaram as despesas necessárias à participação na regata: pintura e reparações, onde gastaram sempre para cima de 1.000 euros.

qual não é o espanto quando hoje, dia 6, no estaleiro do mestre zé rito, ao ler o correio da manhã, o pintor zé oliveira, depara com a seguinte notícia (meio disfarçada): “não vai ser possível realizar as regatas porque não há verbas”, explicou maria da luz nolasco, vereadora da cultura (câmara municipal de aveiro) …….

mas que verbas srª vereadora? os donos dos moliceiros já as dispenderam, o custo total com a regata de moliceiros – feito no estaleiro com os moliceiros e mestres presentes – foi estimado, por cima, em 8.000 euros, tendo em conta os barcos que participariam na regata, os subsídios a atribuir e os prémios a distribuir.

será que a cultura não vale 8.000 euros? o que é a festa da ria sem a regata de moliceiros? quem vai apoiar os proprietários que já realizaram a despesa? que falta de consideração pelos homens da ria a srª vereadora demonstrou ao não os contactar com tempo e fazê-lo através de uma notícia de jornal, num parágrafo perdido no meio?

o moliceiro é o mais belo barco do mundo, aveiro apregoa ser a pátria do moliceiro e depois…. depois diz que não há dinheiro para a regata.

acabar com a regata é ajudar a acabar com os poucos moliceiros que restam, menos 3 este ano que no ano passado, é matar o ícone de todo uma região.

a respeito de camões, escreveu almada negreiros, “este é o país que enche a boca de camões e onde camões morreu de fome”. volta almada e diz de aveiro o que disseste do país.

a pouco e pouco matam a história deste povo e um povo sem história, não existe. façam-no, se assim o querem, mas assumam-no, não sejam hipócritas.

uma festa da ria sem regata de moliceiros é uma mesa posta onde não é servida qualquer refeição.

como diriam os mais velhos “haja respeito”, que esta gente merece, é dela a bandeira que ergueis bem alto, enquanto calcais quem a fez. é este o vosso modo de estar.

mas os moliceiros são gente e de bem, por isso sentem-se e farão sentir que não são merecedores desta prepotência e ignorância.

há lama basta no leito da ria, mas também há muita fora dela em bons gabinetes.

a madrasta dos moliceiros


torreira; 2008

torreira; 2008

o lameirense foi, talvez, o moliceiro mais fotografado da ria, quer pela sua beleza, quer pelo belíssimo ancoradouro privativo que lhe construíram.

um ano houve em que a filha de um emigrante nos eua, pintora, se ofereceu para pintar os painéis, ficaram uma maravilha.

pois bem este barco, com a minha sombra nele inscrita, acabou por apodrecer no final do ano passado.
os moliceiros estão acabar na ria e a câmara municipal da murtosa, que se reclama “pátria dos moliceiros”, assiste impávida e serena ao seu desaparecimento. talvez com o intuito de um dia lhes fazer um museu.

somos melhores a cuidar dos mortos do que a manter os vivos.

madrasta dos moliceiros serás, pátria….. deixa-me rir

torreira; 2008