rapar a ria

com um balde e um pequeno ancinho, na maré vazia, nos cabeços em seco ou com pouca água a cobri-los, apanhava-se a amêijoa japónica, o berbigão.
ao longe, nada mais vês que um casal que parece passear por sobre as águas, povoando o silêncio com as suas vozes, que não ouves mas imaginas
uma paisagem belíssima, um lugar onde o silêncio se ouve e os olhos se limpam da sujidade urbana.
ajoelham-se, pousam o balde, pegam no ancinho e começam a “rapar” a lama da ria. dirias como se batatas, mas aqui, na lama, são amêijoas que colhem.
horas seguidas, tantas quantas a maré permita, que o corpo, esse terá de aguentar.
sobreviver aqui é sobre-utilizar o corpo, desgastá-lo, moê-lo, consumi-lo.
e tudo em silêncio vai pingando para os bolsos dos mesmos, dos que não estão na fotografia.
a japónica deu de comer a muita gente durante dois anos depois, num inverno mais longo e chuvoso, as águas adocicaram e morreu. dela pouco ou nada resta.
os homens e as mulheres, continuam a caminhar e a rapar a ria, são menos, a colheita é pobre, vivem do que a ria ainda dá.

(torreira; 2012)