
joão manuel dias e joão manuel brandão
joão manuel dias e joão manuel brandão
rapar a ria
com um balde e um pequeno ancinho, na maré vazia, nos cabeços em seco ou com pouca água a cobri-los, apanhava-se a amêijoa japónica, o berbigão.
ao longe, nada mais vês que um casal que parece passear por sobre as águas, povoando o silêncio com as suas vozes, que não ouves mas imaginas
uma paisagem belíssima, um lugar onde o silêncio se ouve e os olhos se limpam da sujidade urbana.
ajoelham-se, pousam o balde, pegam no ancinho e começam a “rapar” a lama da ria. dirias como se batatas, mas aqui, na lama, são amêijoas que colhem.
horas seguidas, tantas quantas a maré permita, que o corpo, esse terá de aguentar.
sobreviver aqui é sobre-utilizar o corpo, desgastá-lo, moê-lo, consumi-lo.
e tudo em silêncio vai pingando para os bolsos dos mesmos, dos que não estão na fotografia.
a japónica deu de comer a muita gente durante dois anos depois, num inverno mais longo e chuvoso, as águas adocicaram e morreu. dela pouco ou nada resta.
os homens e as mulheres, continuam a caminhar e a rapar a ria, são menos, a colheita é pobre, vivem do que a ria ainda dá.
(torreira; 2012)
joão manuel brandão
a arte da cabrita alta
(torreira; 2012)
cabrita alta
joão manuel dias
escrevo sete metros
nunca menos
mais de dez quilos
lançar arrastar puxar
lama cascas ameijoa
quantos quilos mais?
os músculos retesados
joelhos fincados
na borda na bateira
esmagam rótulas
tenso o dorso
o esgar na boca
nos olhos no rosto
os dentes cerrados
o esforço verga o corpo
desgasta-o deforma-o
o homem não é de ferro
a cabrita sim tem dentes
ferrados na lama na carne
rasga músculos fere
escrevo sete metros
nunca menos
mais de dez quilos
quero que os sintas
ao leres
no fundo da ria e cabrita arrasta
(torreira; cabrita alta; 2012)
raiva de não ser faca
regresso ao essencial
à dureza da rocha
ao sal colado ao corpo
ao povoamento da ria
terra de pão incerto
mãe do sorriso sofrido
o esqueleto exposto
à rudez da vida
sem molduras coloridas
raiva de não ser faca
(torreira; cabrita baixa; 2012)
quando “japónica” abundou na ria e matou a fome a muita gente
joão manuel brandão (3)
sofridas letras
esculpidas na carne
escritas no rosto
saber os caminhos
do suor ao oiro
da dor à fortuna
é uma outra ria
onde é sempre
maré vazia
cheia de lamas
apodrecidas
depositadas
nas margens
este é o postal
que não encontrarás
no sítio habitual
(torreira; cabrita alta; 2012)
joão manuel brandão (1)
das muitas artes de pesca que ainda se praticam na ria e que pude acompanhar de perto, a arte da “cabrita alta”, para apanhar bivalves é, sem dúvida, a mais dura.
com o joão manuel brandão e o joão manuel dias, em 2012, pude ver de perto o sofrimento que provoca no mariscador.
as fotos que vou publicar são do joão manuel brandão e mostram bem o esforço que se lhe espelha no rosto.
coluna, joelhos, braços, pernas, todo o corpo é uma máquina que se desgasta nesta arte duríssima e que, mais dia menos dia, os leva ao bloco operatório ou à fisioterapia.
parca paga, enorme o desgaste, maior a despesa.
(ria de aveiro; torreira; cabrita alta; 2012)