O barco moliceiro, ex-libris lagunar (continuação)
Dra Ana Maria Lopes
A galeria de tipos é quase infinita.
O rapaz e a rapariga em situação de trabalho e/ ou em relação amorosa plena de malícia contrastam com o galã e vampe enamorados.
Com maior ou menor grau de flexibilidade, mais ou menos de acordo com «a escola» do pintor e o seu grau de sensibilidade, todos os painéis sobrantes estão dentro dos cânones da pintura de moliceiros: motivo central, sublinhado por uma legenda e emoldurado por frisos geometrizados.
Na retina, ficam as cores puras e luminosas: o amarelo, o verde, o azul, o vermelho, o branco e o preto; as gamas intermédias aparecem só num ou noutro pormenor. Tem-se evoluído muito, neste aspecto, como já referimos.
Este conjunto de cores é igualmente usado noutros artefactos locais – as cangas vareiras.
Foi a decoração do moliceiro que influenciou a da canga? Ou, pelo contrário, a da canga que influenciou o moliceiro?
Segundo nosso entender e o de outros – 6 – estudiosos, ambos reflectem a opulência económica da classe dos lavradores muito ligada ao poder político local, nos séculos XVIII e XIX.
Pela vibração cromática, pelos contornos bem marcados, por um figurativismo de planos frontais, pela ingenuidade, pela adaptação do desenho à superfície, pelo recurso a temas do quotidiano, os painéis dos moliceiros constituem exemplos belíssimos de pintura «naïf» concordantes com as quatro legendas sistemáticas plenas de graça -7-.
Normalmente, estas são
inscritas numa estreita faixa branca ou rósea, situada na parte inferior do painel entre o friso e o motivo principal.
Os grafismos usados foram mudando desde a letra minúscula à maiúscula, alternando-a ou misturando-a, manuscrita ou tipográfica.
Tendo acompanhado a construção desta embarcação junto do Mestre Esteves, no seu estaleiro, sempre tivemos a preocupação de que os métodos construtivos e os materiais utilizados fossem o mais tradicionais possível. E com a decoração, aconteceu o mesmo junto do pintor, o José Manuel Oliveira, respeitando o seu estilo. Defende e pratica a mesma linha pictórica com que debutou desde o final dos anos 80, vai acompanhando nos seus painéis os eventos que se vão sucedendo, usando igualmente a diversidade de temas a que estávamos habituados. Não põe completamente de lado o tradicionalismo do painel da proa a BB, reinventando-o. O Zé Manel impôs-se como o mais famoso, produtivo e inovador pintor de painéis de moliceiro.
(a continuar)
-6- Senos da Fonseca, obra já citada, p. 164, Porto, 2011.
-7- Ana Maria Lopes, Moliceiros – A Memória da Ria, 2ª edição. Âncora Editora, Lisboa, 2012.
(murtosa; bico; regata moliceiros; 2007)