memórias do moliceiro


o barco moliceiro, princesa da ria

de todos os barcos que sulcaram, ou sulcam ainda, a ria o moliceiro é sem dúvida o mais belo. atrever-me-ia a dizer que é em simultâneo uma obra de arte e um instrumento de trabalho.

perfeitamente adaptado ao trabalho na ria, em que a as águas de pouca profundidade são predominantes, o moliceiro é um barco de fundo chato com um pontal de 40 a 45cm, navegando, quando carregado, com os bordos ao nível da água.

o facto de o pontal (distância entre o convés/bordo e o fundo) ser tão pequeno, facilita o trabalho dos moliceiros que, para arrancar o moliço do fundo, arrastavam os ancinhos os quais, depois de carregados tinham de ser erguidos e despejado o moliço dentro do barco. quanto menor o pontal, menor o esforço despendido.

se na sua construção de base se encontra uma adaptação ao meio onde se move, e ao fim a que se destina, há porém factores que nada tem de utilitário: a forma da bica da proa e os painéis pintados à proa e à popa ou ré.

o que é que terá levado a que o moliceiro tenha uma bica da proa tão curva? tão semelhante à da barca de mar (da arte-xávega)? não há qualquer finalidade utilitária nestes pormenores, são puros adornos.

com um comprimento entre 14,50m e 15m (Drª Ana Maria Lopes – Moliceiros : A Memória da Ria) e uma boca entre os 2,50m e os 2,60m, o moliceiro é um barco de linhas esbeltas e extremamente elegantes: uma jovem princesa que se passeava pela ria.

é esse o seu encanto, a causa da paixão de todos os que nele trabalharam, passearam ou meramente contemplaram. é impossível ficar indiferente a uma princesa. por amor a ela às regatas todos se entregam, sem contrapartidas que não a emoção.

os moliceiros e apanha do moliço

de acordo com “ Relatório Oficial do Regulamento da Ria”, de que é co-autor o então capitão-tenente jayme affreixo, publicado em 1912, os números relativos à apanha de moliço eram os seguintes:

1.883 …. 1.342 barcos

1889 ….  1.749 barcos ——     957 moliceiros ——-     2.687 lavradores

1911 …. . 1.054 barcos —–      875 moliceiros ——-     1.633 lavradores

“A estatística de 1.883 dá 158:000$000 réis para o valor anual da colheita ao preço médio de 1$250 réis a barcada.

o cálculo do seu rendimento pode fazer-se de acordo com o seguinte modo:

“Existem 1.500 barcos (aos 1.054 registado na capitania acrescenta 400 a 500 não registados), cada um dos quais, nos 3 meses de Agosto, Setembro e Outubro, à razão de uma barcada por dia de trabalho, colhe seguramente 70 barcadas, cujo preço médio não é inferior a 1.$800 réis; e, no resto ano, à razão de uma barcada por 4 ou 5 dias, colhe 30 barcadas ao preço médio de 4$000 réis. Igualando porém este preço ao anterior, para desconto de barcos de lavradores que nesta segunda época não exercem a apanha temos: 1.500 barcos, com 100 cargas cada um, a 1$800 réis, ou seja um rendimento anual de 2.700$000 réis”.

ainda de acordo com o mesmo relatório:

“ Em 1907 e 1908 o rendimento total da produção marinha da ria de Aveiro é:

Peixe ………. ………………………………….…54.000$000 réis

Peixe de viveiros ………………………….……3.000$000 réis

Algas (moliço) valor superior a …….. 270.000$000 réis

Juncos, valo superior a ………………..   73.000$000 réis

Total …………………………………….…… 400.000$000 réis”

por aqui se vê o valor que representava o moliço na riqueza produzida pela ria.

(torreira; 2008)

dos moliceiros e do moliço, algumas regras e rituais




sorri, foi a pensar em ti

na ria de aveiro existem algumas ilhas, zonas que se mantêm secas durante todo o ano, dentre estas destacam-se três na zona mais norte: monte farinha, amoroso e testada.

a riqueza das ilhas residia no junco que crescia no seco e no moliço que crescia debaixo de água. na ilha de monte farinha chegou a haver gado, de que se destacava a criação de cavalos.

a ilha do amoroso tinha três sócios, um dos quais era meu tio avô, motivo pelo qual o acompanhei muitas vezes nas viagens que fazia à ilha, para reparações nos canais e manutenção da casa que aí existia e tinha um poço e uma figueira.

para poderem explorar o moliço das zonas submersas da ilha, os proprietários pagavam à capitania uma licença especial, só podia apanhar moliço na ilha quem tivesse autorização dos donos. não havia zonas exclusivas para cada barco, toda a zona submersa podia ser explorada.

ao domingo de manhã, depois da missa, vestindo o “fato de ver a deus”, os moliceiros iam a casa do meu tio, responsável pela contabilidade da ilha, que os aguardava com uma garrafa de vinho doce e um cálice, enquanto nas mãos segurava um pequeno saco de pano.

cada moliceiro dirigia-se ao meu tio e dizia: sr. césar esta semana foram tantas barcadas de moliço, a tanto cada uma dá…. e punham o dinheiro no saco, bebiam um cálice e iam até casa.

era assim até à hora de almoço: encontros de homens de palavra.

foi com estes princípios que fui criado e se tenho pais biológicos, tenho na ria uma outra família que me educou e de mim fez o homem que sou.

curiosidade

quando em 1923 raul brandão publicou o livro “pescadores”, (obra completa em : http://docs.paginas.sapo.pt/raulbrandao/Os_Pescadores.pdf). o autor da capa desenhou nela um moliceiro, o mesmo se repetiu, pelo menos, na segunda edição. ao querer que a capa fosse apelativa e, não sei se por ignorância, se por motivos meramente estéticos, escolheu um moliceiro para capa de um dos mais bem escritos e estudados livros sobre os pescadores portugueses.

o moliceiro que barco de pesca nunca foi ……

na semana da morte de saramago



nesta semana, ficámos a saber muita coisa:

– que os críticos de saramago, afinal o consideravam um grande escritor

– que um senhor, que responde pelo nome de sousa lara – subsecretário de estado da cultura de um governo de cavaco – reafirmou que voltaria a não apresentar o nome de josé saramago a escritor europeu do ano, uma vez que o “evangelho segundo jesus cristo” ofende o catolicismo da maioria dos portugueses e, ainda por cima, o citado escritor tinha criticado o primeiro ministro cavaco silva. a censura afinal, ao bom estilo da outra senhora, assumida e publicitada.

– que cavaco “não teve o privilégio de ser amigo ou ter conhecido” josé saramago, pelo que não se sentia obrigado a estar presente no funeral. será que terá tido o privilégio de o ter lido?

– que o presidente da assembleia da república também não esteve presente

– que o governo espanhol se fez representar nas cerimónias

enfim que este país está bem entregue e a cultura, um prémio nobel, em portugal, para os seus mais elevados representantes, só valem um representação.

será que não são eles próprios a representação de si mesmos e de muito mau gosto?

assim vamos por cá.

e agora josé?

– agora é urgente reler “levantado do chão” que só assim nos afirmaremos como povo. que os mais altos representantes da nação ainda pelo chão gatinham

consultar:

http://www.atarde.com.br/cultura/noticia.jsf?id=3946257

http://blog.josesaramago.org/

http://www.youtube.com/watch?v=U5IKp320Kxk&feature=related

http://www.youtube.com/watch?v=vuohB_arwRE&feature=related

http://www.youtube.com/watch?v=XjTUC74Ujas&playnext_from=TL&videos=hO91ZO1PNVI&feature=sub

era uma vez um amigo – vitor caravela


este ano, ao regressar à torreira para uns dias de descanso, muitas foram as portas onde bati e em muitas foram más as notícias que recebi: faleceu, foi a palavra mais ouvida. está mal….
assim se vão indo os amigos e vamos resistindo, que é da lei da vida continuar.
a memória porém começa a encher-se de rostos que nunca mais.
o vitor morreu dia 6 de junho, hoje foi a enterrar o secundino e outros mais …
assim todos os anos há mais espaço para os que partiram. só que este ano foi muita gente.
saudades de todos e continuar a recordá-los: o estar vivo aqui
(murtosa – torreira)

do além tejo


o verão. o sol a pino. os sobreiros: muitos.

a terra amarela: tanta. um homem só: o chapéu,

o colete. mais solitário ainda: o burro. o pó

cega a garganta. caminhos de areia percorro.

no plano o vento morre cansado: tão longe.

o monte. cães lentos ladram, não mordem.

as casas brancas, sempre. o friso azul debroa.

o vermelho: bandeira. o horizonte a perder.

a serra. a vida arrasta-se: tanto calor. o gado

pasta erva rala, mato seco. rasteiros pinheiros

tortos morrem: o sal. sobre o mar as dunas, os

calhaus. a areia: muita. a gente: pouca. assim

o malhão.

assim o alentejo!

nesta imensidão árida só teu rosto me humedece

os lábios.