lembro-me de ser assim


 

 

lembro-me de ser assim…

“cumpria-se a terra
depois de agosto
nas eiras plenas de oiro
as desfolhadas

gentes de casa
em casa
o ritual da partilha
dos braços

em coro e ao desafio
a festa
em cantares de antes do milho
mãos
ágeis e sábias desfolhavam maçarocas

vermelha a maçaroca sorria
milho rei
o beijo pedido
celebrava ele também
o reiniciar da vida”

 

o lado negro da luz (1)


o lado negro da luz

recuso cantar o desejo

sublimado em palavras

no inventar de um corpo

sonho a percorrer

não é este o tempo de

 

quando tudo escasseia

até o pão da palavra

é ázimo

as ruas estão cheias

de bocas vazias

e tu cantas o corpo

o corpo que, sei lá,

não sabes se terias

 

trago as pedras da calçada

para o teclado

atiro com elas ao monitor

onde um homem se diz ser de raça

sem que se saiba de que raça é

o raça do homem

que muitas somos

nenhuma a dele porém

 

 

o lado negro da luz

é cada vez mais visível:

cortante

mariscadores da ria de aveiro


duvida

é natural que o sintas

o real começa a deixar de o ser

a beleza é sublime demais

estranho

muito estranho

estranhamento belo

 

tão estranho

quanto real

tão belo

quanto duro

tão feérico

como viver da ria

 

é uma existência não existente

uma estranha forma de ser

ave e lavrar a lama

nisto se fazendo gente

pairar sobre as águas

será sonho

mas quem pode evitar

o sonho de voar?

 

fica na dúvida

guarda-me a teu lado

um lugar

fiquemos assim ambos

sentados sem saber se

é o real que estamos a olhar