quando o mar trabalha na torreira_ cipriano brandão


 

cipriano brandão

 

 

é este o meu mar
de ondas revoltas
desafiando homens e barcos

por mais que o contemple
nunca o conhecerei
saberei dele apenas
o suficiente para tentar voltar

é este o meu mar
nele encontro meu outro ser
pés fincados na areia
olhos perdidos no horizonte

em dias de paz
recebe-me em sua casa
e serve-me do que pode
irmão pai amigo mãe

é este o meu mar
da terra meu único bem

(torreira; século XX)

 

 

xávega_os ganchos de arribar


são dois, os ganchos

 os barcos de mar, da pesca de xávega, têm à proa e à ré, fixos nos painéis laterais, dois aros de ferro, chamados arganéis, que servem para prender o barco e puxá-lo para terra, com rapidez, quando arriba.

a tracção é feita pela introdução de dois ganchos, um em cada arganel, que se ligam por corda ao tractor, hoje, às juntas de bois, noutros tempos.

a inserção dos ganchos nos arganéis é feita por dois pescadores experimentados, porque tem de ser rápida e com precisão. não vá o barco rodar e esmagar-lhes as pernas – o que não seria a primeira vez.

a perigosidade do procedimento, pode ser observada pela rapidez com que é executada e pela forma como os executantes correm, fugiondo das proximidades do barco após terem desempenhado a sua tarefa.

(torreira)

 

 

o poeta


poema

 

o poeta

o poeta habitava um bairro suburbano ainda com a traça dos velhos bairros históricos. todas as manhãs, antes de ir para o trabalho, sentava-se no poial da porta e contemplava o filme das gentes e das coisas.

durante o dia, as palavras, os sons, as cores, tudo, lhe repassava pela mente cansada de tanta máquina.

no regresso, o dia terminava como começara, sentado no poial esperava a noite, de novo mergulhado no espectáculo da rua.

sempre com os olhos mais além, era conhecido de todos, pelo quase não estar como estava e pelo modo como se dirigia a todos. havia algo nele que ninguém sabia definir. 

dele sabiam apenas que nunca aprendera a ler e a escrever e que em todas as palavras que lhe ouviam havia uma música, também ela indefinível, acompanhada de um sorriso luminoso.

“o poeta” era, não carecia de mais.

quando o mar trabalha na torreira_como se a morte


quando dia acaba

como se a morte

regaço aberto o barco
aguarda o momento
o exacto instante
do adormecimento

atentas nuvens
velam

o dia cansado de tanto ser
recolhe-se nas tascas
bebe uma cerveja
um copo de três
joga cartas damas dominó
pela noite vagueia
triste e só

como se a morte

e a vida fervilha por toda
a praia
que não na areia

(torreira; século XX)

tempo de dúvidas e de certezas


curvas apertadas

(sou o quê?)

 

somos mais que o que julgamos

ou menos que o que de nós pensam?

que pensamos de nós?

que somos nós para pensar?

 

habito a dúvida

perdi o número da porta

esqueci o andar

não tenho telefone

vagueio algures

 

não me digam nada

ou digam-me tudo

mas saibam como dizê-lo

ou calá-lo

sem ninguém de permeio

sem ninguém

ouviram!

 

o que eu sou

é uma questão nossa

ou só minha

porém se a queres tua

que o seja entre nós

 

sou

aquela imagem ínfima

na base de um espelho

de uma viela perdida

numa terra por entre serranias

também eu em busca de

 

isso

ir ao mar


já lá vai o barco_olá sam paio

em quase todas as praias onde ainda se pratica a pesca artesanal de xávega, há mais do que uma companha.

o barco larga perpendicular à praia e, no mar, toma uma de duas direcções: ou continua na perpendicular e segue mar adentro, ou abica ao norte e depois vira para o largo,  para lançar as redes sem interferir com as outras companhas.

muitas foram, em tempos idos, as guerras por causa da partida, o primeiro a partir largava como queria e, frequentemente interferia, impedindo de partir os barcos de uma ou mais companhas que ficavam a ver onde era largada a rede, para saberem como traçar o rumo. foi, inclusivamente, necessário estabelecimento de regulamentos para a largada dos barcos, isto para evitar “verdadeiras batalhas campais” em que os bordões se transformavam em varapaus.

há ainda a limitação, na época balnear, da área definida pelas autoridades para os banhistas e dentro dos quais as redes não podem entrar.

tudo isto o arrais toma em conta na definição do rumo que vai tomar, considerando ainda o último lanço e os resultados obtidos – regresso ou evito- e eventuais escolhos no fundo que possam romper as redes.

 

(torreira, companha do murta, 2006)

 

 

 

do amor


sorriso

não

não te vou escrever

um poema de amor

primeiro porque não o sei

e, depois, porque o amor vive-se

ou se escrito outra coisa será

 

do amor

o escrever

é recriar o que poderia ter sido

ou inventar o desejo de ser

 

não

hoje apetece-me apenas estar contigo

não sabendo sequer se existes ou existirás

ficar assim no silêncio cúmplice

dos amantes

sem saber o que poderá acontecer

e que se acontecer

jamais será escrito

 

sim, hoje

apetece-me

estar contigo