amanhece na ria


amanhecer na marina da torreira

 
nem todas as manhãs
são a manhã
nem todos os dias
são o dia
 
porém
tu és neles o que deles
fizeres
 
serão ainda
quando tu já não
aí reside
a memória de teres sido
se acaso
o fores intensamente
 
quando
o dia for dia
mesmo sem o ser
e a manhã for a manhã
em que tudo se inicia
 
porque tu
só tu
podes ser-te

xávega_do largar (II)


" e o barco vai de partida"

longe vão os os tempos em que o francês françois dennis escrevia: ” estranha terra esta onde os bois vão lavrar o mar” (citado por raul brandão, in “os pescadores”).

onde hoje os bois na agricultura? então, porquê no mar?

os tempos trazem consigo a mudança e é neles que vivemos. hoje o trabalho pesado que antes era feito por juntas de bois, é coisa de tractores, frequentemente comprados em segunda mão no ribatejo ou além tejo.

e sim, os tractores vão lavrar o mar, ei-los.

o que poucos sabem é que para trabalharem na areia e no mar, os pneus não são cheios com ar, mas sim com água.

o tractor empurra o barco até onde puder, garantindo o máximo de firmeza, segurança, ao largar, por ventura até o barco ganhar calado e o motor poder ser accionado.

(torreira; companha do murta; 2006)


o sol nas mãos

 

com o sol nas mãos
vou
desvairado
em busca do amanhecer

acordo as noites

as mãos
poisadas no corpo
fremente
atordoam-no

acordo as noites

sonho muito
sonho tudo
e não sou
nada

com o sol nas mãos
vou

o caminho das ondas


maria de fátima
 
curva-se o mar
à bravura dos homens
quebram-se sobre
o barco as ondas
e passam
 
seguem os homens
o seu destino
indiferentes
sabem que ainda não
 
um dia
cheios de tanto terem sido
será o último
ficará o vazio de não ser
alojado no não ir
 
o homem é
onde o mar também
 
(torreira; companha do marco; 2010)

xávega_do largar (I)


olá sampaio com o arrais zé murta na ré
 
neste registo estão perfeitamente visíveis os três “fixes” que seguram o barco de mar na preparação para o largar:
 
– a regeira: amarrada ao golfião de estibordo da bica da proa
– a muleta apoiada na peça metálica fixa no exterior da bica da ré
– o reçoeiro, enrolado na bica da ré e que o arrais vai soltando ou apertando consoante a intenção.
 
note-se que ambas as cordas estão direccionadas para norte, de onde vêm as correntes dominantes, por forma a manter o barco perpendicular à costa e às vagas. caso o barco se atravessasse poderia virar de bordo, o que é um dos acidentes mais frequentes.
 
(torreira; companha do murta; 2006)
 
 

uma gota de água


tantas gotas de água

 

a ternura
o abraço
a dádiva

uma gota de água
desliza no vidro
da janela

a ternura
é um substantivo
comum a dois

uma gota de água
suspensa
treme

o abraço
é um substantivo
incomensurável

uma gota de água
teimosa
cresce

a dádiva
é um substantivo
incomum a muitos

numa gota de água

quantos somos?


			

quando o mar trabalha na torreira_ti antónio neto (falecido)


ti antónio neto

conheço uma a uma
as dunas
cada grão de areia
é um irmão a brilhar ao sol

do mar
sei de cor todas as cores
são elas o meu abc
com as ondas
falo
em conversas amenas de verão
e peixe

trato por tu
barcos bois redes cordas bóias

sou mais um braço
um par de pernas
um pescador
que na praia ou no mar
só tem um desejo
voltar

(torreira, século XX)

xávega_do largar


arrais zé murta (falecido)

à espera do “liso” o arrais zé murta, segura o reçoeiro, enquanto a muleta “ampara” a bica da ré.

quando estiver de feição a largar, o arrais dará ordem ao tractor para empurrar a muleta e irá deixando correr o reçoeiro, que faz também fixe em terra.

chama-se “liso” ao intervalo entre sequências de ondas, estas sucedem-se com frequências que são lidas pelo arrais ( 3, 5, 7….).

ler o mar é arte de arrais

(torreira; companha do murta; 2006)