partiram de bolsos vazios
e o país no coração
sonhavam uma vida melhor
uma casa a velhice diversa
foram dos primeiros e
voltaram
e no voltarem foram
os últimos
filhos e netos semearam
que outras raízes criaram
mais que uma bandeira
são um povo
orgulhoso das suas origens
é uma honra ter entre eles
tantos amigos
saber o valor
da palavra dada
dizer não com a convicção
que dizer sim
seria verdadeira negação
saber que os valores
não têm cotação na bolsa
se bem que pela sua venda
muitos encham o bolso
ser eu ainda
apesar de
venderás o peixe no mercado
aos fregueses fiéis
comprar-to-ão por comodidade
hábito e cansaço
às quintas montarás banca
na feira venderás coisas várias
outros caminharão à tua sombra
serás o chefe não o líder
nas terras piquenas é tão fácil
parecer grande
de incerteza se fazem estes dias
em que os sábios ignoram
e os ignorantes dão aulas de sapiência
tempo de bruxas dirás
de todos os santos dizem
dos defuntos fiéis ou não
que tudo incerto é
ser do mundo cidadão
é destino de quem nasce
em pobres terras
que mundo também o são
ah donos da terra
guardados os palmos
de terra na terra
de que donos vos dizeis
só essa vossa será
porém a ela fugis
porque de tão vossa
a não quereis
à terra o que da terra é
digo
terra que vos ofereço
para que seja toda vossa e nela
vós todos que donos sois
quereis a paz
aí a tereis
os painéis dos moliceiros têm sido objecto de estudo e até teses de doutoramento – caso de clara sarmento -, sendo as pinturas e as legendas objecto de classificação.
no livro ” Os Moliceiros da Ria de Aveiro – Quadros Flutuantes” , clara sarmento propõe a seguinte classificação : Jocosos (Eróticos, Instituições, Figuras típicas, Trabalho); Religiosos; Vida Quotidiana (Trabalho da Ria, Varinas, Mestres e seus Barcos, Apelos Ecológicos à preservação dos moliceiros, Festas e Cerimónias, Ditos e Conselhos); História e Personalidades (Monarcas, Descobrimentos, Escritores, Soldados e Cavaleiros, Personagens do imaginário e lazer).
ana maria lopes no livro “MOLICEIROS” propõe : Amorosos; Eróticos (Maliciosos); Patrióticos; Históricos; Profissionais; Folclóricos; Desportivos; Quotidiano.
a preservação deste património terá levado, inclusivamente, à criação dos concursos de painéis em aveiro por iniciativa do vereador arnaldo estrela santos, em data anterior a 1957 – segundo diamantino dias – e na romaria do são paio, na torreira.
a predominância dos painéis “Jocosos” ou “Eróticos” em relação aos restantes, verificada nos últimos anos, terá a ver, segundo o pintor josé oliveira, com os prémios pecuniários atribuídos pelos júris e que recaíam normalmente sobre estes. facto que terá levado o dono de um moliceiro a dizer ” pró ano é gajas, o que eles querem é gajas” (cito josé oliveira).
mas “Jocosos” ou “Eróticos” respeitavam sempre aquilo a que habitualmente se designa por “brejeirice da beira ria”, caracterizada pelo duplo sentido, pelo subentendido, pela “riqueza de interpretações de uma frase”, a que a pintura empresta mais uma interpretação dúbia, não sendo explícita, nem “para maiores de 18 anos”.
infelizmente a “brejeirice da beira ria”, que reflecte a velha expressão “a língua portuguesa é muito traiçoeira”, parece estar a derivar para uma “vilhenice” de segunda categoria, para não dizer pior. se a legenda é de duplo sentido, a pintura é de muito mau gosto, de leitura única e desaconselhada “para todas as idades”.
em 2019 surgiu o primeiro painel com estas características, em 2020 já foram dois. por este andar onde vamos acabar?
não sei qual foi a classificação do júri para os painéis em causa, nem li quaisquer reparos a tais pinturas.
enfim, se é triste verificar que o empobrecimento dos motivos decorativos dos painéis tem a ver com as decisões do júri na atribuição dos prémios pecuniários, não podemos deixar resvalar os desenhos/pinturas para, desculpem-me o termo porque forte, a “ordinarice”.
(nota : não reproduzo os painéis em causa por motivos óbvios)