a álvaro de campos
não sou nada
e nesse nada ser
sou que baste
aceito-me coisa pouca
pedra no caminho
areia na engrenagem
página rasgada
de um livro perdido
não sou nada
não quero ser nada
sou assim eu
(xávega; praia de mira; 2009)
dezembro começou com sol
dia bom para lavar e secar o natal
fiz máquina com todos os ingredientes
anticalcário detergente amaciador
programa longo
dupla centrifugação à rotação máxima
estendi na varanda coberta
não fosse a chuva tecê-las
esperei que secasse
quando o tirei da corda estava na mesma
manchas de sangue nódoas de lágrimas
aquele vermelho berrante de refrigerante
enlatado entranhado
depois de tanto trabalho o resultado
foi levá-lo para o contentor de reciclagem
e esquecer mais um investimento familiar
(xávega; dar o porfio; torreira; 2012)
imagina que não estás aqui
que este não é teu tempo
não vês não ouves não lês
imagina e escreve
um poema de amor
uma história ligeira
pedi-te que imaginasses
porque a realidade
é inimaginável
experimenta
atirar palavras contra o real
e imagina que algo muda
imagina e escreve
um poema de palavras duras
porque duros são estes dias
estás vivo e não precisas
de imaginar basta seres
(xávega; o arribar da manga; praia da leirosa; 2019)
escolho escolher
escolho o que como
o que bebo sei o que posso
onde vou e quando
eu na minha inteireza sou
rocha antiga firme
em convicções e causas
não conheço quem
possa escolher um povo
que não o escolha
é pescadinha de rabo
na boca e isso
só com arroz de tomate
(xávega; zorra carregada com barco em fundo; torreira; 2013)
cavar fundo
revolver a terra
cavar mais fundo
abrir pedras
na raiz da palavra
o coração do poeta
saboreio o fruto
digo o poema
(xávega; rede seca carregada a preceito; o voo do saco; torreira; 2013)
nota: depois de ter secado, estendida no areal, a rede é colocada sobre a zorra – estrado de tábuas pregadas sobre toros, com uma corda para poder ser traccionada – com a seguinte sequência : mão de barca; saco; reçoeiro (terminologia da torreira)
a palavra escrita digo
devagar soletro
a emoção com os dedos
cego caminho pelas letras
repito-me repetes-me
eu sou as minhas palavras
pensava que o sabias
que me ouvias e era gravura
antiga em rocha dura
o que te dizia
sabes não há verdades
eternas nem mentiras que muito
durem o sol hoje é lá fora
não o será sempre
que outras estações virão
(xávega; aparelhar; torreira; 2013)