crónicas da xávega (618)


dezembro começou com sol
dia bom para lavar e secar o natal

fiz máquina com todos os ingredientes
anticalcário detergente amaciador
programa longo
dupla centrifugação à rotação máxima

estendi na varanda coberta
não fosse a chuva tecê-las
esperei que secasse

quando o tirei da corda estava na mesma
manchas de sangue nódoas de lágrimas
aquele vermelho berrante de refrigerante
enlatado entranhado

depois de tanto trabalho o resultado
foi levá-lo para o contentor de reciclagem
e esquecer mais um investimento familiar

(xávega; dar o porfio; torreira; 2012)

crónicas da xávega (617)


imagina que não estás aqui
que este não é teu tempo
não vês não ouves não lês

imagina e escreve
um poema de amor
uma história ligeira

pedi-te que imaginasses
porque a realidade
é inimaginável

experimenta
atirar palavras contra o real
e imagina que algo muda

imagina e escreve
um poema de palavras duras
porque duros são estes dias

estás vivo e não precisas
de imaginar basta seres

(xávega; o arribar da manga; praia da leirosa; 2019)

crónicas da xávega (614)


escolho escolher

escolho o que como
o que bebo sei o que posso
onde vou e quando

eu na minha inteireza sou
rocha antiga firme
em convicções e causas

não conheço quem
possa escolher um povo
que não o escolha

é pescadinha de rabo
na boca e isso
só com arroz de tomate

(xávega; zorra carregada com barco em fundo; torreira; 2013)

crónicas da xávega (613)


cavar fundo
revolver a terra

cavar mais fundo
abrir pedras

na raiz da palavra
o coração do poeta

saboreio o fruto
digo o poema

(xávega; rede seca carregada a preceito; o voo do saco; torreira; 2013)

nota: depois de ter secado, estendida no areal, a rede é colocada sobre a zorra – estrado de tábuas pregadas sobre toros, com uma corda para poder ser traccionada – com a seguinte sequência : mão de barca; saco; reçoeiro (terminologia da torreira)

crónicas da xávega (612)


a palavra escrita digo
devagar soletro
a emoção com os dedos

cego caminho pelas letras
repito-me repetes-me
eu sou as minhas palavras

pensava que o sabias
que me ouvias e era gravura
antiga em rocha dura
o que te dizia

sabes não há verdades
eternas nem mentiras que muito
durem o sol hoje é lá fora

não o será sempre
que outras estações virão

(xávega; aparelhar; torreira; 2013)