lembro-me
das mãos da aurora
das irmãs das canastras
da alcunha herdada
lembro-me
e guardo na memória as vozes
o grito
sardinha linda
do nosso mári
aceso o fogareiro
pingavam no pão
a memória só
só
(sardinha linda; xávega; torreira; 2008)
t r ê s h o r a s
tinha vinte anos
chamava-se sayfollat musallet
tinha ido visitar a família
à cisjordânia era palestiniano
foi baleado por colonos israelitas
mas não bastava
chamada a ambulância
os colonos cercaram-no durante
t r ê s h o r a s
impediram que a ambulância
o socorresse
assassinaram-no duas vezes
a primeira por ódio
a segunda por sadismo
colonos israelitas
c o l o n o s i s r a e l i t a s
na cisjordânia
não em gaza
t r ê s h o r a s
(torreira; 2013)
os bárbaros vestem-se de automóveis oficiais
seguranças aviões têm casa em paraísos fiscais
os bárbaros assassinam friamente
em nome do deus do dinheiro
sacrificam o futuro à ganância efémera
os bárbaros caminham sobre corpos
esfacelados de crianças mortas
de fome de tiro certeiro de estilhaços
os bárbaros apertam mãos abraçam
recolhem apoios de gente aparentemente limpa
com valores escondidos nos bolsos
os bárbaros mandam comandam fazem
comem em mesa farta e nada vêem para além
do prato cheio regado a sangue inocente
os bárbaros são presidentes eleitos governam
ditam leis aprovam decretos e orçamentos de guerra
fracos os cúmplices calam consentem e sorriem
os bárbaros roubam com um sorriso cândido
iludem-se patrões de um mundo sociedade anónima
os bárbaros morrerão e o seu legado será
destruição e morte negação de humanos terem sido
(corrida de chinchorras a remos; s. paio; torreira; 2018)
este é o meu tempo
o meu mundo é aqui
se quero ser é aqui e agora
recuso-me a ficar sentado
à soleira da porta a falar
com as árvores e as flores
ou contigo amor que invento
costas viradas ao coração da casa
não ouvindo não vendo
a desumanidade dentro dela
é aqui e agora
com as parcas armas que tenho
palavras palavras tão pobres
mas que mordem ferem cortam
denunciam
é aqui e agora
ou amanhã não sei onde
terei vergonha de não ter sido
por isso escrevo
porque a realidade ultrapassa
é o genocídio em gaza
(xávega; dar o porfio; torreira; 2011)