os moliceiros têm vela (567)


da poesia

a poesia casa

o poeta dentro da casa
pensa-se diz-se é
o imaginado

a poesia janela

o poeta espreita o mundo
pela janela e retira-se
para dentro da casa
escreve respirou ar livre

a poesia porta

o poeta sai de casa entra
no mundo pensa-o
escreve-o descreve-o
cidadão da palavra

a poesia epígrafe
ou será epitáfio

esconde o medo do poeta
sob a capa do outro
o consagrado o inquestionável
teme pelo poeta

(moliceiros; s. paio; torreira; 2012)

os moliceiros têm vela (566)


os moliceiros têm vela (566)

a minha língua é filha e mãe
pare e acolhe é colo e berço
a minha língua é viva

a minha língua tem as portas
abertas às palavras
às gentes às geografias

a minha língua é antiga e jovem
é muitas linguas é rio
rico de afluentes desagua em delta

a minha língua é livre
se acordos quiseram acorrentá-la
oiçam-na migrante na sua terra

a minha língua é pacífica
mais que isso humilde
resigna-se a que dela mal digam
e o façam usando-a

a minha língua já foi e há-de ser
mais que os que a usam
permanecerá no tempo
sorrindo ao mundo portuguêsmente

a minha língua não tem dono
e só é minha porque a uso
não porque me pertença
e tua será se a usares

não mordas a tua língua
o sangue pode sufocar-te

(moliceiro; regata da ria; torreira; 2014)

postais da ria (552)


uma bomba caiu
dentro do poema

palavras estilhaçadas
mortas irreconhecíveis
escorrem sangue

é branco o sangue
das palavras
soma de todas as cores
a paz também

uma bomba caiu
dentro do poema

há letras perdidas
desaparecidas
amputadas mortas

é negro o sangue
das letras
ausência de todas as cores
a guerra também

(por caminhos de lama e ria; torreira; 2010)

crónicas da xávega (596)


escreve com um machado
essa arma medieva
no pulso presa
decepava cortava
mutilava indefesa gente

escreve com um machado
essa ferramenta de lenhador
no abate das grandes árvores
cortar lenha para o inverno
afiado gume funda ferida

escreve com um machado
bela metáfora para
a navalha de ponta e mola
língua bífida de víbora bípede

(xávega; ir ao mar; largar o reçoeiro; torreira; 2014)