mais eu que nunca


companha do marco, 14 de junho de 2012
estou muito longe
de tudo
muito perto
de mim
encho-me de mar
e não há palavras
que digam sequer parte
do que sinto

quem sou
é outro
sendo o mesmo que fui
mas muito maior que eu
lavei todo o meu corpo no mar
limpei-me das impurezas urbanas
reencontrei o vernáculo
dos homens que não viram as costas
às ondas

pesco neles o pão
para estas palavras poucas
e ofereço-vos
do muito que sou agora
o tanto que me ofertaram

estou muito longe
de tudo
mais eu que nunca

(torreira; 14 de junho de 2012)

a nossa gente


irene vasca, torreira

a nossa gente
come da terra os frutos
mais amargos
regados a suor
caminha sobre as águas
como se terra fosse

a nossa gente
partiu para onde onde não queria
sempre em busca
do que na terra não havia
avaro o mar negava
o que também a ria
falo do pão

a nossa gente
é anfíbia e sobrevive
no segredo dos dias
por onde passam
raros
raios de sol
trazidos de outros países

a nossa gente
cresceu fora da terra mãe
onde vem morrer
as saudades de aqui
não ter vivido

a nossa gente
é nossa
mesmo se esquecida
é nossa
mesmo se maltratada
é nossa

a nossa gente
é gente

o grito


reflexos marina pescadores torreira
recuso outro tempo
que não o meu
sou o agora e o aqui

na inquietação de
querer melhor

sou
a pedra
no vidro
o prego
no sapato
 
não mudo de passeio
mudam
não ponho máscaras
sou-me
irritantemente
por vezes sei e nunca
é demais

não procuro
encontro
reencontro
vomito
 
quisera ser
o grito

que povo é este ?


à espera . . .  e já se foram
talvez de palavras se faça
o discurso
mas com actos se concretiza
assim se faz o homem
tragam-me um

diz-me que terra é esta
onde já poucos morrem
porque menos nascem?
terra de partida
terra em que não há pobres
dizem
porque misérias muitas

os moliceiros esguios elegantes fermosos
os mais belos barcos do mundo
não eram barcos
eram casa
ave
pão na mesa

que povo é este que tem
de buscar as suas memórias
em arquivos de museus que não os seus
que povo é este que tão fraca gente
à frente tem

vou ainda ao meu encontro
no desencontro de estar aqui

(torreira e dois moliceiros que já não existem – nem o dono)

moliceiros, património ou propaganda?


O Pardilhoense é um barco moliceiro construído no ano de 1996, em Pardilhó, em casa do anterior proprietário, Sr. Carlos Vilar. Tem um comprimento de 14,70 metros e uma boca de 2,54 metros. Foi adquirido em 22 Dezembro de 2010 pelo Moliceiro da Costa Nova. Reconstruido pelo mestre Zé Rito em 2011, com madeira de pinheiro bravo para o tabuado e madeira de pinheiro manso para as cavernas. Foi lançado na água nos finais de Junho desse mesmo ano. A madeira de pinheiro bravo veio dos pinhais de São Vicente Pereira, e o pinheiro manso do pinhal de Leiria. Foram respeitadas as medidas do barco anterior e algumas cavernas: o restante foi totalmente feito de novo. Está registado no turismo de Portugal para passeios turísticos, tendo licença para transportar 21 pessoas, incluindo os 2 tripulantes. É o moliceiro mais moderno a operar na ria e um dos poucos a navegar à vela nos passeios turísticos. A sua vela maior tem cerca 80m2. Também já participou em inúmeras regatas. Foi recentemente pintado pelo artista Zé Manel. Os painéis são alterados regularmente com temas novos, para poder participar nos concursos de painéis que ocorrem em Aveiro e na Murtosa (Festa do São Paio). Tenta-se ser o mais criativo e original possível.

(texto de jorge bacelar)

 

 

 

 

mesmo ao lado um moliceiro em terra:

 

moliceiro do manuel valas

enquanto um é pintado para navegar outro procura novo dono!

é assim na terra que se diz  “pátria do moliceiro”.

afinal, património é investimento na memória ou propaganda balofa?

para os edis da murtosa é propaganda: por todo o lado se pode ler a frase emblemática, mas nada se faz para que os moliceiros continuem a navegar na ria. que apoios dá a câmara municipal aos donos dos últimos moliceiros, para os manterem a navegar? é verdade que a câmara tem um moliceiro, mas que faz com ele?

desditosos filhos que tal pátria tendes!

todos os anos moliceiros são vendidos para fora do concelho, por falta de capacidade financeira dos resistentes para suportar os encargos com a sua manutenção. todos os anos os responsáveis pelo município a isto assistem e continuam a usar, sem qualquer vergonha, a frase ” murtosa pátria dos moliceiros”.

e é verdade, a murtosa é de facto a pátria, os donos da casa é que puseram um letreiro à porta a dizer vende-se.

assim vamos por cá

o moliceiro é pessoa


painel do moliceiro “pardilhoense”
o artista traça meticulosamente
as linhas que nos trazem o rosto
a  memória das palavras
simples
das mensagens
complexas

dir-te-ei um livro
vogando sobre águas mansas
levando cultura na proa
pandas as velas
cheias de poemas
 
o moliceiro
é pessoa

(o pintor josé manuel oliveira a pintar um dos painéis da proa do moliceiro “pardilhoense”)

hoje há selecção


a espera da chamada

 

hoje não há governo

nem oposição

empregado ou patrão

hoje há selecção

 

hoje não há desempregados

nem mesas sem pão

hoje é dia de sim

amanhã pode ser dia de não

mas hoje

hoje há selecção

 

um carro parou de repente

impedindo a circulação

aí sim

houve discussão

tudo porque

hoje há selecção

 

por debaixo da caixa

da televisão

uma voz sibilina canta baixinho

“lá vamos cantando e rindo”

ainda há quem se lembre da canção?

 

pois é

é bom que se lembre

porque em país de futebóis muitos

de défices, de desemprego, de fome

de corrupção

 

hoje tudo se esquece

porque

hoje há selecção

 

ergo-me árvore


o peso das raízes
prende a nuvem ao sonho
gota a gota
sobre os dias cai o ser aqui

de novo
reencontro nas redes
as mãos
safando limos caranguejos bastos

a vida
depois do grito negro
do choco
na face

os homens são-me agora
mais próximos
deito-me ao comprido da ria
braços abertos
num abraço retido no fundo de mim

ergo-me por dentro
cresço árvore onde água

(o peso da solheira; torreira)

das palavras


visto-me de palavras
de palavras ando
que de palavras me fui fazendo
sem saber se muitas
se poucas
apenas pelo prazer de

para o dia a dia
camisa garcia márquez
calças eugénio de andrade
sapatos sophia de mello breyner
um bruto carro
antónio lobo antunes

para a praia
polos marca vinicius
calções de banho drummond
chapéu faulkner
toalha miguel angel asturias

de inverno
impermeável proust
meias prévert
e você manuel bandeira
junto com zé gomes
aquecem os meus dias

óculos
esses não dispenso 
para ler as marcas da roupa que visto
então só mesmo se forem fernando pessoa 

(coimbra; baixinha)