O Braco Moliceiro: património do proprietário


De acordo com a Direcção Geral do Património Cultural existem três tipologias caracterizadoras do que pode ser classificado como Património Cultural Nacional:

Imóvel
Móvel
Imaterial

Partindo destas definições da DGPC gostaria de discorrer sobre o “Anúncio n.º 272/2022, de 15 de dezembro”/  Diário da República n.º 240/2022, Série II de 2022-12-15, páginas 82 – 82 , em cujo Sumário se pode ler: “Inscrição (salvaguarda urgente) do «Barco Moliceiro: Arte da Carpintaria Naval da Região de Aveiro» no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial.

Com este anúncio lançaram-se foguetes, escreveram-se editoriais e fizeram-se proclamações: O Barco Moliceiro é Património Cultural Nacional, disse-se e escreveu-se.

Bom seria se verdade fosse, mas basta ler o anúncio e há lá “:” que estragam tudo. Dois pontos, meus amigos, não um “e”. O que foi inscrito no património nacional foi a «Arte da Carpintaria Naval da Região de Aveiro», nem poderia ser outra coisa, dado tratar-se da inscrição no Património Cultural Imaterial.

O moliceiro, a ser inscrito como muitos, e eu também, queremos, teria de ser no Património Cultural Móvel, pelo menos enquanto existir.

Há que reconhecer que o título, que é o constante da candidatura, é que provoca a confusão, permito-me deduzir que propositadamente, e a isso dedicarei algumas linhas que, espero, vos sejam de algum proveito.

É da MatrizPCI da inscrição – ver Nota no final -, documento caracterizador exaustivo do pretendido, http://www.matrizpci.dgpc.pt/MatrizPCI.Web/InventarioNacional/DetalheFicha/818?dirPesq=0 que partirei para tirar algumas ilacções.

1. Não sendo o Moliceiro objecto de inscrição é feita na “Caracterização desenvolvida” uma descrição detalhada e bem pormenorizada do Barco Moliceiro tradicional para, mais à frente, bastante mais, se descreverem umas adaptações – “ Adaptações construtivas do Barco Moliceiro para a actividade turística … alguns ajustes e a adaptações construtivas em prol da segurança dos turistas, por um lado, e para permitir a navegação nos canais urbanos da Ria de Aveiro…” . Deste modo, e contra o pensamento de muitos, e meu também, escreve-se que os barcos que circulam nos canais também são “moliceiros”. Ou seja, não é por acaso, que numa candidatura que somente pretende inscrever a «Arte da Carpintaria Naval da Região de Aveiro» no Património Cultural Imaterial Nacional se escreva tanto sobre o Moliceiro. Como dizia o meu tio avô César Cravo (gorim) : gente de bico amarelo – os murtoseiros entendem-me. Deixo a interpretação deste procedimento ao critério de cada leitor.

2. Escreve-se ainda, na mesma “Caracterização desenvolvida”, que “Vários autores reconhecem que a adaptação do Barco Moliceiro para as actividades turísticas foi crucial para ele tenha chegado aos nossos dias.”. Que Moliceiro? Devem referir-se aos barcos que circulam nos canais, e que tão subrepticiamente pretendem chamar “moliceiros” não aos Moliceiros Tradicionais que, se têm sobrevivido, tem sido à custa do esforço financeiro dos seus proprietários – quantos são de Aveiro? Honra seja feita à Dra Maria Emília Prado e Castro, a moliceirinha como lhe chamo – naturais da zona norte da Ria de Aveiro, da Murtosa e da Torreira. Os apoios que recebem por participar nas regatas ajudam à amanhação anual do Barco Moliceiro, mas não chegam para cobrir as despesas.

3. Actualmente a construção de um Barco Moliceiro para fazer turismo, já não há moliço e os passeios turísticos em ria aberta são a única forma de tentar rentabilizar o investimento, depende da autorização da DGAM (Direcção-Geral da Autoridade Marítima), que exige planos e cortes e cálculos, como para qualquer outra embarcação que se dedique ao turismo. Os custos destes processos, só os soube de ouvido, porque quando enviei um email à entidade pedir informação sobre todos os procedimentos e custos – nele dizia pretendia mandar construir um para fins turísticos – não obtive qualquer resposta. Por isso não os insiro neste artigo. Mas fica a pergunta: se há uma inscrição no Património Cultural Imaterial da «Arte da Carpintaria Naval da Região de Aveiro» tendo em vista a sua “(salvaguarda urgente) “ – como se escreve no anúncio supra -, será que vão deixar de ser necessários e a “«Arte da Carpintaria Naval da Região de Aveiro» efectivamente salvaguardada? Fica a pergunta.

Resumindo

# O barco moliceiro não é Património Cultural Nacional
# Os barcos que andam nos canais são “moliceiros adaptados”
# A carpintaria naval da Ria de Aveiro só ficará salvaguardada se for alterada a legislação em vigor e não seja necessário projecto de construção

Estranhamento

Se a minha análise do documento estiver correcta – estou aberto ao contraditório – estranho que estudiosos da Ria e seus barcos, como a Dra Ana Maria Lopes, o Eng. Senos da Fonseca e a investigadora Etelvina Almeida, cujos trabalhos fazem parte da bibliografia do processo, ainda se não tenham manifestado

(Nota)

Como consultar o documento MatrizPCI da inscrição

Fazer uma pesquisa no Google com “Matriz PCI”
Na barra de em branco escrever “Moliceiro”
Clicar na figura que surge com um moliceiro em construção e têm o processo aberto

no jornal “Notícias de Aveiro”

“ O moliceiro já é património eleitoral!”


(artigo publicado no “Notícias de Aveiro” de 22 de julho de 2021)


No passado dia 15 de Junho iniciou-se o congresso da Comunidade Intermunicipal da Região de Aveiro (CIRA), com a “apresentação da candidatura do Barco Moliceiro a Património Imaterial da UNESCO”.

Por António José Cravo *

Para os amantes do Barco Moliceiro e, num repente, a exclamação é de alegria e satisfação, acompanhada de um finalmente! Depois, pensando melhor, surgem as primeiras questões:

– Que Barco Moliceiro vai ser candidatado? O descrito nas obras consagradas de Ana Maria Lopes, D. José de Castro, Diamantino Dias, Jaime Vilar e Senos da Fonseca? O que veleja ainda em ria aberta?

– Nos canais de Aveiro circulam barcos, a que Diamantino Dias chamou de forma elegante turisteiros, que anunciam “Passeio em Barco Moliceiro Tradicional”.

(“Existem actualmente cerca de 50 barcos moliceiros numa região onde no início dos anos 70 seriam cerca de 3.000 barcos operacionais” – Turismo do Centro. Não cita o século nem a fonte, 3.000!!!!! – nunca em tempo algum. Compreendem a minha preocupação?)

Interessante neste processo é ser a candidatura do Barco Moliceiro apresentada na “Praia da Vagueira, no Espaço Museológico da Arte Xávega”. Faz sentido? E o Município da Murtosa, Pátria do Moliceiro? Aí sim, não seria o local certo para a apresentação? Um pequeno detalhe para aguçar a memória, no quadro comunitário 2007/2013, Ribau Esteves liderou a vertente desconcentrada PROMAR da Região de Aveiro e quando, na sessão pública de apresentação, lhe perguntei que fundos tinha destinado à xávega, a resposta foi: nenhuns. Esclarecedor?

Na publicação e-cultura, de 14 de Junho, do Centro Nacional de Cultura, dá-se nota do evento e escreve-se “Mais recentemente também foi conhecida a intenção das autarquias de Estarreja, Ovar e Murtosa, de candidatarem a arte de construção naval dos moliceiros a Património Cultural Imaterial da UNESCO”. Para a SIC, a candidatura do CIRA engloba também as artes de construção.

Na reportagem da apresentação, o consultor identifica na candidatura o Barco Moliceiro e a Carpintaria Naval da Região de Aveiro.

Enfim, problemas de comunicação.

Feita esta já um pouco longa apresentação, mas que levanta muitas questões, a minha pergunta é: porquê a candidatura à UNESCO – Património da Humanidade – sem, em primeiro lugar candidatar a Património Nacional e obter a classificação? Será que Humanidade vai reconhecer um património que o país não reconhece? O avô reconhece o neto que o pai ainda não reconheceu?

A este respeito pode ler-se no jornal Concelho da Murtosa, de 15 de Julho, em artigo não assinado “ …é ainda necessária a inscrição no Inventário Nacional do Património Imaterial, efectivamente o primeiro passo formal de uma candidatura a Património Imaterial da Humanidade…”

No dia 26 de Janeiro de 2018, publiquei neste jornal um artigo intitulado “O moliceiro Património Nacional, quando?” (https://www.noticiasdeaveiro.pt/o-moliceiro-patrimonio-nacional-quando/). Aí coloquei muitas questões e listei as vantagens sobre o reconhecimento do moliceiro como Património Nacional, não vou por isso repetir-me mas queria deixar o link para a listagem actualizada Património Imaterial Nacional reconhecido oficialmente: http://www.patrimoniocultural.gov.pt/pt/patrimonio/patrimonio-imaterial/inventario-nacional-do-pci/lista-do-inventario-nacional-do-patrimonio-cultural-imaterial/

Num momento em que o mundo vive na incerteza, esta candidatura é, como diz o povo, “fruta da época”. Certos são os 70.000 euros com que os fundos comunitários financiaram este projecto, não sei se há comparticipação nacional a adicionar, mas os 70.000 já é bom.

https://ahcravo.com https://www.youtube.com/user/ahcravo/

crónica no jornal “Notícias de Aveiro”


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Mais grave, não é atribuírem ao arrais Ançã o salvamento do Nathalie, grave é que para o fazerem ignoram completamente os pescadores da Torreira, eles sim os verdadeiros salvadores – e aí temos documentos que suportam a sua presença e coragem.”
O NAUFRÁGIO DO NATHALIE E O ARRAIS ANÇÃ (QUE NÃO ESTEVE LÁ) II
 
Em Dezembro de 2017, já lá vão dois anos, iniciei uma colaboração, com artigos de opinião, que se prolongaria por 13 meses. O primeiro artigo que publiquei tinha o mesmo título deste em que retomo o tema porque, se então demonstrei, e não houve contraditório expresso, que não havia qualquer evidência documental da participação do arrais Ançã no salvamento do Nathalie, fiquei sempre com uma questão em aberto:
 
Como teria começado esta estória que muitos transformaram em “história” com estórias?
 
A resposta encontrei-a num documento que já tinha consultado, mas não na totalidade – pesquisa em documentos físicos começa no seu início, em documentos encontrados pelo dr. Google leva-nos para onde ele nos indicou e, nem sempre, os lemos a totalidade. Foi um alerta com que fiquei.
 
Espero que com a crónica de hoje o caso fique esclarecido e que, se assim não fôr, venham os defensores com documentos coevos e demonstrem o contrário. Infelizmente estou habituado ao silêncio dos que não concordam com o que escrevo, mas também não têm argumentos que suportam a sua discordância.
 
Em resumo, e usando um ditado popular, “quem cala consente”…. era bom era, deixam que o tempo passe e, sem rebaterem teses com argumentos, lá vêm com as suas teorias.
 
Feita esta breve introdução entremos naquilo que importa: o início da “lenda”
 
 
Da história à “estória” vai uma proposta de lei
 
O documento que está na base da atribuição ao arrais Ançã do estatuto de “salvador do Nathalie “ é a Proposta de Lei nº 737-E, do Ministério da Marinha, apresentada à Câmara dos Deputados em 02 de Agosto de 1922
 
 
A proposta visava a atribuição de uma pensão de 100$ mensais, ao arrais Gabriel Ançã e foi aprovada.
 
Interessante a introdução à Proposta:
 
….. Desejava o Ministério da Marinha trazer ao conhecimento dos representantes da nação a longa lista dos actos de abnegação praticados por este benemérito da humanidade e para tal fim tinha encarregado a Capitania do Porto de Aveiro de colher os necessários elementos junto do próprio Ançã, visto que, não sendo funcionário público, a resenha dos salvamentos por ele efectuados, em barco ou a nado, não consta, na sua maior parte, no registo das estações oficiais.
 
Baldado intento, porque tendo o velho pescador considerado como simples incidentes da sua vida, e sem importância muitos desses salvamentos e ainda porque se lhe obliterou a sua lembrança, não pôde relatá-los tendo aquela capitania procedido à consulta de documentos e informações para poder apontar os seguintes factos: …..
 
Seguem-se as intervenções do arrais Ançã em diversos naufrágios, entre os quais se refere o naufrágio do Nathalie, nos seguintes termos
 
Em 1880 encalhou ao sul da Praia da Torreira, com cerração e mau tempo, o vapor francês Nathalie, começando logo a ser demolido pelo mar, tendo-se refugiado a tripulação, e alguns passageiros, nos mastros.
 
Tendo-se organizado um serviço de salvação com os recursos locais, foi Gabriel Ançã arrais do barco, que, depois de ter atravessado mais de 200 metros de perigosíssima rebentação, conseguiu recolher dezoito náufragos, entre estes uma senhora que numa violenta crise nervosa se lhe prendeu ao pescoço, obrigando-o a dirigir a manobra nesta crítica situação …..
 
E aqui começa a estória do “arrais Ançã salvador do Nathalie”. Quem consultar este documento, ainda por cima Proposta de Lei do Ministério da Marinha, e não for mais além, tem a consagração do salvador, com detalhes muito interessantes – então o da senhora francesa é excelente.
 
Apetece dizer, como na canção, que “afinal havia outro”. repito: o jornalista do Campeão das Províncias não escreveu que o arrais Ançã era o arrais do barco – coisa estranha numa notícia tão minuciosa. O Diário do Governo que identifica e distingue os salvadores do Nathalie, não refere o arrais Ançã, sequer para dizer que estando presente e sido o arrais do barco, lhe era destinada outra distinção noutro diploma.
 
Note-se, no entanto, que no preâmbulo da Proposta do Ministério da Marinha se pode ler: “ não sendo funcionário público, a resenha dos salvamentos por ele efectuados, em barco ou a nado, não consta, na sua maior parte, no registo das estações oficiais”. Logo não há registos oficiais de todos os salvamentos, pelo que as fontes de informação complementares, a que a Capitania do Porto de Aveiro poderá ter recorrido, serão a imprensa local ou depoimentos orais.
 
Entende-se agora porque motivo o Ministério da Marinha refere o arrais Ançã como salvador do Nathalie – há uma lei que o consagrou – e porque é que não há registos no Arquivo da Marinha de qualquer intervenção do arrais Ançã no mesmo naufrágio. Azar, mas este foi um dos registos que não foi feito porque ele não era “ funcionário público”, dirão os defensores da tese da sua participação no salvamento, que não encontram qualquer registo oficial que o confirme -, enquanto outros, como eu, dirão: não há no Arquivo da Marinha, mas também não há nos documentos/relatos à data produzidos – reportagem e Diário do Governo.
 
No caso do Nathalie as únicas fontes escritas conhecidas são a reportagem do Campeão das Províncias e o diploma do Governo de atribuição de medalhas de mérito aos cinquenta e um pescadores da Torreira. em nenhum se fala do arrais Ançã.
 
Mas, mais grave, não é atribuírem ao arrais Ançã o salvamento do Nathalie, grave é que para o fazerem ignoram completamente os pescadores da Torreira, eles sim os verdadeiros salvadores – e aí temos documentos que suportam a sua presença e coragem.
 
Em conclusão, a Capitania num acto, penso eu, de boa vontade, para dar maior força ao pedido de atribuição de pensão ao valoroso arrais Ançã, acrescentou, não sabemos como, o salvamento do Nathalie aos salvamentos feitos pelo arrais Ançã. Começa assim a “estória” do salvador do Nathalie ter sido o arrais Ançã.
 
Numa geração, como a minha, a quem ensinaram, na escola primária, que tinha existido uma “Escola de Sagres”, de que hoje ninguém fala e os que falam sabem que nunca existiu, há dois tipos de atitude face à informação: a confiança nas fontes ou a dúvida e pesquisa sistemática, ou ainda a aceitação passiva do que se escreve, ou vai escrevendo.
 
Tenho o maior respeito pelos homens e mulheres dedicados à escrita da chamada “história local” ou “pequena história”, e ao contributo fundamental que dão para o entendimento e conhecimento de factos a que os historiadores diplomados raramente se dedicam, mas lamento que quando vão para além do que conhecem, e alguns com formação de base em ciências exactas, romanceiem de tal forma os factos, que em vez de serem fornecedores de informação se transformem em incrementadores da confusão.
Certamente que, lá onde está, o arrais Gabriel Ançã muito se ri, e continuará a rir, quando lê certos documentos e, provavelmente pensará: estão-se a afogar e agora é que não os posso salvar.
 
crónica de janeiro no “Notícias de Aveiro”

crónica de janeiro no “Notícias de Aveiro”


A gripe, eu e os livros

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O livro, qualquer livro, é a VIAGEM por excelência – a que o autor fez até o começar, a feita ao escrevê-lo, a que o leitor faz ao lê-lo e a que fará depois de o ter lido. Quantas viagens encerra um livro!

Ler é um factor de liberdade e de libertação, por isso houve quem entendesse que a felicidade residia na ignorância e fizesse desse princípio um dos pilares do seu poder. Chamaram-se, chamam-se, chamar-se-ão sempre, ditadores.

Apesar de todas as vacinas, este ano apanhei a minha dose de gripe, não muito forte porque vacinado, mas tive-a e valeu-me a saúde 24. Enquanto a cabeça pesava, não consegui ler e é essa foi outra doença.

Pensei, já com a cabeça mais leve, nos meus livros, no como são importantes para mim hoje, como é importante saborear a leitura sem pensar no que amanhã acontecerá ao livro. Porque os livros também têm histórias para contar – mais uma viagem. Pensar no que acontecerá aos meus livros, depois de mim, não resolve o problema deles, nem o meu, só me acrescenta problemas, então o melhor é lê-los, senti-los, falar deles.

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Neste apontamento breve queria falar de três livros que nas minhas estantes ocupam lugar de relevo – que, sem serem mais que os outros, são mais de mim -, “Os pescadores” de Raul Brandão, edição ilustrada dos Estúdios Cor, 1957, “A Ria de Aveiro”, de Augusto Nobre, Jaime Afreixo e José de Macedo, edição da Imprensa Nacional, 1915 e “Gente” de Eduardo Gageiro, Editorial O Século, 1971.

Sempre me interessaram os livros pelo seu conteúdo e não por outras razões. Quando, nos princípios da década de 80, o poeta Joaquim Namorado me quis vender, a preço de amigo, a primeira edição de Orpheu, respondi-lhe: Para quê Dr. Joaquim, já os tenho – tinha a edição fac-similada da Ática. Hoje, mais maduro, tê-los-ia comprado, não pelos livros, mas como memória do amigo – mas isso é outra história.

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Os três livros comprei-os porque me surgiram e porque não os tinha. Não são primeiras, nem décimas edições, são edições únicas. Interessante é que dos três, dois têm características especiais nas dedicatórias. “A Ria de Aveiro” tem uma dedicatória de Jaime Afreixo a um amigo, “A Gente”, tem a dedicatória de Eduardo Gageiro, confirmada a assinatura pelo autor, aos professores que lhe ensinaram as primeiras letras.

O livro de Gageiro foi quase dado porque tem uma folha com defeito. Os possíveis compradores que o folhearam antes de mim e o podiam ter comprado, desistiram quando viram esse defeito. Mas se o livro vale alguma coisa, em termos de história de vida de Eduardo Gageiro, é pela dedicatória. É preciso sentir os livros, folheá-los, cheirá-los – como faz António Lobo Antunes com as edições das suas obras.

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Quanto a “Os pescadores” em edição ilustrada, pensei nunca os arranjar e, de repente, aparece um anúncio de venda. Quando depois de o folhear “com carinho” página a página e percorrer todas as fotos, à mesa do café, ao regressar a casa foi abraçado a ele que subi os degraus. Só depois me apercebi do gesto e de como inconscientemente os afectos se manifestam. Era como se mais um filho, mais um neto. Não era só um livro.

Um livro nunca é só um livro, depois de o lermos o livro é uma parte de nós, da nossa história, do sermos mais. Porque um livro só nos acrescenta.

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Ler, ler, ler. Ler muito só faz bem. Ter um orientador de leituras, uma referência que nos vá dando dicas sobre o que ler, dentro do nosso caminho, é importante – devo muito a Joaquim Namorado e aos livros da biblioteca de meu pai.

A minha neta mais velha quando vinha ter comigo, pequenita, com birra ou a chorar, bastava-lhe ver um embrulho que já sabia ser um livro, para estender as mãozinhas e parar com birras e choros.

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foto de Santos de Almeida Júnior

a #caçadeira, a carrinha funerária e o dr. google


(a minha crónica de dezembro no “Notícias de Aveiro”)

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manuel pego na sua #caçadeira a remar à ré – década de 90

No dia 13 de Maio de 2018, o Cais do Bico, na Murtosa, foi palco de um momento marco na história dos moliceiros tradicionais, o bota-abaixo do moliceiro Ferreira Nunes. Infelizmente pelo que vos contarei a seguir é também um dia triste e que servirá de alerta para o futuro.

ahcravo gorim *

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manuel pego a levar a #caçadeira à vara – década de 90

A bateira mais pequena da ria de Aveiro é a #Caçadeira que, como a própria designação indica, era uma bateira usada para a caça e algumas artes de pesca solitárias. #Caçadeira sem qualquer outra designação acessória.

Entre os muitos mestres construtores, destacaram-se na construção da #Caçadeira, Joaquim Rato e Preguiça. Foi uma #Caçadeira construída pelo mestre Joaquim Rato – talvez a última em bom estado de conservação – que fotografei e medi, num armazém propriedade de familiares do mestre.

Comprimento– 4,5 metros ; Pontal – 0,30 m; Boca – 1,10m; Cavernas: 8

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a #caçadeira feita pelo mestre joaquim rato

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versão da #caçadeira a preto e branco

Como se pode ver era uma bateira muito pequena, normalmente só para uma pessoa, sem leme, nem traste e o mastro entrava num buraco existente no vertente. Era um barco muito leve, embreado e que o tripulante, normalmente caçador, podia facilmente transportar para seco e abrigar-se num coberto de junco ou canizia na espera da madrugada e da caça. Nos meus tempos de jovem cheguei a andar numa. Era a bateira que os emigrantes tinham para, no seu regresso temporário à Murtosa, fazerem as suas pescarias à fisga, à certela, ao candeio e grandes caçadas.

Nos meus arquivos encontrei uma foto, dos anos 90, de uma #Caçadeira, em frente ao Cais do Bico, já era só embreada por fora, tinha uma pintura alaranjada no interior. Ao mostrá-la ao balcão da Casa da Alcina, na Bestida, logo um companheiro, Carlos Litro, a identificou: era de Manuel Pego, funcionário da Auto-Viação da Murtosa, e nela o Carlos tinha feito muitas pescarias.

Ora no citado dia 13 de Maio, aconteceu também o bota-abaixo de uma bateira de recreio, a que deram o nome de “Menina da Ria”, com o comprimento de uma #Caçadeira, nada mais. Pintada de azul, amarelo, vermelho, branco e mais cores houvera, com leme, traste e mastro a entrar no “buraco do traste”. Só teria, repito, da #Caçadeira, sem o medir, o comprimento.

Logo ali foi identificada pela proprietária e pelo Presidente da Câmara da Murtosa como sendo uma “bateira caçadeira”. Ao Presidente da Câmara perdoa-se-lhe o não saber o que dizia, basta olhar para o logotipo que adoptou para o Município, o mesmo não se poderá dizer da sua proprietária que se diz estudiosa e defensora das embarcações tradicionais da Ria de Aveiro. Não me manifestei na altura atendendo à presença de amigos que tinham vindo de longe para assistir ao bota-abaixo do moliceiro. No entanto, perguntei a alguns murtoseiros, mais velhos que eu, se “aquilo” era uma #Caçadeira. A resposta imediata foi que não. Quem é que ia à caça com uma bateira colorida? Para cores havia as negaças.

Do bota-abaixo da dita bateira de recreio se fez divulgação e foi notícia, espalhando-se a falsa designação, associada a uma ainda mais falsa reprodução.

Imaginem a seguinte história. Um casal de jovens compra uma carrinha funerária em bom estado, pinta-a de cor de rosa, decora-a com corações vermelhos e adapta-a para caravana. Toda colorida, artilhada e preparada para passear, alguma vez alguém lhe chamaria carrinha funerária? Jamais! Era uma caravana para passeio.

É ridículo o exemplo? E o que fizeram à #Caçadeira? Pintam-na, fazem adaptações, chamam-lhe bateira-caçadeira, e são abençoados pelas entidades da terra.

Pior, se fizerem uma busca na internet usando o Dr. Google e escreverem “caçadeira” só vos aparecem armas, se escreverem “bateira caçadeira” vejam o que aparece. E assim o erro, que nos meios de comunicação tradicionais demorava anos a espalhar-se, hoje com a comunicação digital, reproduz-se a uma velocidade inimaginável.

A #Caçadeira, a mais pequena bateira da ria, tem de voltar a figurar de novo nas pesquisas do Dr. Google. Porque estou a escrever num jornal digital e a notícia vai ser reproduzida em publicações nas redes sociais, coloquei sempre o “hashtag” #, antes de Caçadeira. Facilita o encontrar da designação correcta associada a este conteúdo.

Podem perguntar porque esperei até agora para fazer esta publicação. Esperei muito, é verdade, mas tinha de investigar e testar aquilo que aqui afirmo, consolidar pesquisas. Este é o tempo.

Assim termina um ano de colaboração mensal no Notícias de Aveiro onde tive a liberdade de me expressar e desmontar algumas falsas verdades, que nunca foram desmentidas nem referidas pelos que as vão espalhando por aí.

Regresso em 2019, quando e com o que de interessante me parecer merecer escrita. Eu, como me conheço nesta fase da minha vida: sem outros compromissos para além dos impostos pelos médicos e por aquilo que me dá prazer fazer, quando me apetece fazê-lo.

Peço-vos que façam de 2019 o ano da #Caçadeira e da recuperação da sua memória, da verdadeira e não da que nos impingiram em 2018. Divulguem este artigo e as fotos.

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postal com uma #caçadeira, da colecção de paulo horta carinha (1926)

Bom ano.

(nota: o facto de no artigo eu usar maiúsculas tem a ver com a natureza da publicação, excepção feita a #Caçadeira que foi propositado)

a crónica no “Notícias de Aveiro”

https://www.noticiasdeaveiro.pt/a-cacadeira-a-carrinha-funeraria-e-o-dr-google/

 

 

crónica de novembro no “Notícias de Aveiro”


As mesas dos cafés, a globalização e a crise das utopias

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No tempo em que vivemos, a que já alguém chamou “era da técnica”, a mesa do café saiu pela porta, pela janela, por onde pôde e estendeu-se pelo mundo. Globalizou-se. As conversas alargaram-se aos cinco continentes, passeiam pelas ruas de todos os países, a distância morreu nos braços do WWW e tudo pode ser aqui e agora.

As redes sociais não são mais que a mesa do café globalizada. Quem o não entender hoje, terá dificuldade em estar no amanhã.

Veja-se a recente eleição de Bolsonaro como Presidente do Brasil e de Trump nos Estados Unidos, e as polémicas que geraram. No entanto, Obama foi dos primeiros a utilizar as redes sociais numa campanha eleitoral, que venceu, embora sem quaisquer polémicas.

Assim sendo o que é que as separa? Se o meio é o mesmo, a polémica só pode ser gerada pelos conteúdos, não na exposição das opções políticas, essas claramente diversas, mas por um qualquer outro motivo. Em relação à eleição de Bolsonaro soubemos pelas televisões, e pelas redes sociais também, que tinha difundido a notícias falsas sobre os seus adversários – note-se que na moderna linguagem da comunicação, mentira e falsidade são “inverdades”.

Será que isso só acontece nas redes sociais? E nos meios de comunicação tradicionais? Argumentarão os defensores destes que sendo os seus profissionais jornalistas, obedecem a regras deontológicas e de credibilidade que as redes sociais não contemplam. Seria verdade se não estivéssemos atentos às “notícias” que nos são servidas a toda a hora. “Notícias” que constroem redes sociais nas velhas mesas de café, gerando conversas que se debruçam sobre o “estado a que isto chegou !”.

As redes sociais são o inimigo número um da verdade na informação? Claro que não.Tal como não se pode dizer que os automóveis são o maior inimigo do homem, apesar dos últimos dados sobre os mortos causados por acidentes com automóveis.

A internet veio pôr à disposição do homem novas formas de comunicação, não criou um homem novo. Vivemos num tempo em que a crise das utopias se faz sentir ao nível dos valores e da ética: vale tudo desde que eu ganhe! O “nós” é um eu sem vergonha.

“Caro leitor” , sejamos claros e directos, vivemos numa sociedade onde o dinheiro comanda a vida – “… hoje tudo é mercado” escreveu Rosa Montero. António Gedeão neste momento, onde quer que esteja, só tem pesadelos.

Sei que escrevo esta crónica num jornal local digital, e o que escrevo aqui também o faço nas redes sociais, não é criado no silêncio dos corredores, numa fábrica das inverdades ou à mesa onde come a alta finança e tudo se planeia. Escrevo-o aqui e …. se já piquei de algum modo a sua curiosidade ou lhe abri uma janela para espreitar de outra forma a realidade que lhe servem em directo, já foi bom.

Até breve, aqui ou numa qualquer rede social perto de si.

(nota esta crónica surge na continuação da anterior e encerra-a)

link para a notícia

https://www.noticiasdeaveiro.pt/as-mesas-dos-cafes-a-globalizacao-e-a-crise-das-utopias/

 

crónica do mês de julho no “Notícias de Aveiro”


1

Labrega : autor Artur Pastor, Série “Portugal Litoral” Setúbal anos 40/60

As viagens da Labrega

Mão amiga deu-me conhecimento da abertura no dia 17 de Julho, em Setúbal, de uma exposição do fotógrafo Artur Pastor, organizada pelo filho, Artur Costa Pastor, e enviou-me uma foto constante da exposição: a de uma Labrega Murtoseira que encima esta crónica.

Estava aberto o caminho para a crónica. “Uma labrega em Setúbal!”, comentou outro amigo. Tinha de escrever a crónica. Recorrendo à minha biblioteca, a memórias familiares e ao universo virtual, sem quaisquer pretensões de escrever um “artigo”, ela aqui está .

Em primeiro lugar, como e quando terá chegado a Labrega a Setúbal? Da mesma forma, pelos mesmos motivos e no mesmo tempo que a Ílhava, tal como é descrito por Senos da Fonseca em “Embarcações que tiveram berço na laguna” – migração pela costa, crise na economia piscatória, e não só, durante o século XVIII na ria de Aveiro. Note-se que na ilustração desta migração marítima da Ílhava, a imagem utilizada por Senos da Fonseca na página 82, é uma foto onde aparece uma Labrega Murtoseira e não uma Ílhava.

2

Labrega – do livro “Embarcações que tiveram berço na laguna- Senos da Fonseca

 

No Tejo deixou a Labrega memória nas bateiras avieiras, o que já referi, e é consensual, na minha crónica de Janeiro deste ano http://www.noticiasdeaveiro.pt/pt/46854/o-moliceiro-patrimonio-nacional-quando/.

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Bateiras avieiras: “Ribatejo”, jornal online

Da memória da família consta a ida do meu bisavô Domingos José Cravo (gorim) para a Azambuja, durante a época do sável, estabelecendo-se com uma bateira num esteiro – conhecido à época por “esteiro do gorim” – vendendo mercearias e pão aos pescadores e vizinhos. Imagino o meu bisavô numa Labrega Murtoseira, só pode. Desta sua deslocação sazonal fica a notícia do jornal “Povo da Murtosa” de 23 de Julho de 1917, onde na rúbrica “Chegadas” se pode ler “ Da Azambuja, chegou á sua casa da Murtoza o nosso assinante sr. Domingos José Cravo…..”

Em “Achegas para uma História da Pesca em Portugal”o Capitão Bento Leite escreve a seguinte nota: “1819 – os pescadores de Alhandra, Alverca e Póvoa de Santa Iria queixaram-se dos varinos de Aveiro e Ovar que traziam redes de arrasto para o Tejo”. Labregas, Ílhavas, ambas?

O caso de Setúbal. Existem em Setúbal duas zonas povoadas por comunidades de pescadores migrantes: a poente as Fontaínhas e o Bairro Santos Nicolau – gente da região de Aveiro, murtoseiros predominantes nas Fontaínhas – e a poente o bairro de Tróino – migrantes vindos do Algarve.

 

Da actividade e dimensão da população de pescadores da Murtosa em Setúbal, fica-se com uma noção através da notícia publicada no “Povo da Murtosa” de 1 de Dezembro de 1913, com o título: “Pescadores em Setúbal”, onde se pode ler “Sob a denominação de Associação da Classe dos Pescadores da Murtoza em Setúbal, vem de fundar-se naquela cidade … uma associação de classe com o fim de defender os interesses dos pescadores nossos patrícios ali residentes”.

Os pescadores das Fontaínhas e do Bairro Santos Nicolau tinham os seus barcos na Doca Comercial, vulgarmente conhecida por “Doca das Fontaínhas”, os pescadores de Tróino na Doca de Pesca, a poente, junto à lota.

Analisando fotografias da mesma época, das duas docas, que insiro nesta crónica, verifica-se que na doca das Fontaínhas se podem ver muitas Labregas murtoseiras e na doca de pesca muitas Barcas algarvias. Ou seja, o povoamento terrestre reflecte-se no “povoamento marítimo”, a cada comunidade o seu tipo de barco.

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Doca de pesca de Setúbal: autor Artur Pastor . Série “Portugal Litoral” Setúbal anos 40/60

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Doca das Fontaínhas: do livro “Setúbal D’Outros Tempos” – Américo Ribeiro

Muito poderão os estudiosos vir a publicar sobre este tema. Infelizmente não conheço obra publicada e aprofundada que possa citar, quer sobre a Labrega Murtoseira, quer sobre o “povoamento marítimo” das duas docas de Setúbal – só memórias fotográficas insertas em livros genéricos. Acontece que nem no citado livro de Senos da Fonseca, nem em “Bateiras da Ria de Aveiro” de António Marques da Silva e Ana Maria Lopes, se encontram referências à Labrega. Terá isto a ver com outra forma de povoamento na ria de Aveiro? O da produção e publicação de estudos sobre o património náutico da região: a sul Ílhavo e a norte Ovar. A pobre da Labrega é património da Murtosa onde reside também o icónico Moliceiro que a “abafou” em termos de estudo, até no pouco publicado por murtoseiros.

Existe uma tese de mestrado, para a qual dei modestas achegas iniciais, que se debruçou sobre a Labrega já lá vão alguns anos, mas que nunca vi em formato legível, para poder dela retirar quaisquer ilacções.

Apesar da designação “labrega” assumir hoje em dia a forma de adjectivo depreciativo, ela foi e é um substantivo com uma carga histórica muito forte, ferramenta de trabalho que deu de comer a muita gente. Falta que lhe seja dado o devido relevo pelos estudiosos produtores de obra publicada.

Até lá ficam estas notas e as fotos que as ilustram. Na próxima crónica voltarei à Labrega, porque o difícil é começar.

(os meus agradecimentos a Artur Costa Pastor pela autorização de utilização, nesta crónica, de fotos de seu pai, Artur Pastor)

crónica de maio no “notícias de aveiro”


Pensar o moliceiro hoje (2) – Ser radicalmente realista

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No dia 29 de janeiro deste ano enviei um email para a Capitania do Porto de Aveiro, que transcrevo:

Exmo Sr.

Capitão do Porto do Aveiro

Estou a estudar a possibilidade de investir na aquisição, ou encomenda para construção de raiz, de um moliceiro tradicional, para utilização em passeios turísticos em toda a extensão da Ria de Aveiro.

Para melhor equacionar e tratar do investimento, parece-me fundamental saber dos normativos que estribam não só a compra/encomenda, como a exploração.

Neste entendimento, venho solicitar a V. Exa se digne informar-me dos normativos nacionais e locais, bem como dos custos processuais e de licenças anuais inerentes a todo o processo acima descrito.

Caso seja possível agradecia o envio dos documentos, ou a sua localização na net, para este endereço de email.

Com os meus mais respeitosos cumprimentos”

Como ao fim duas semanas não tinha qualquer resposta, telefonei para a Capitania e fui muito bem atendido, disseram-me o que sabiam, e já não era pouco, mas remeteram-me para o Capitão do Porto única entidade que poderia esclarecer devidamente os problemas que coloquei. Até hoje, 26 de Maio de 2018, não recebi qualquer resposta, pelo que estou perfeitamente esclarecido.

Como encarar então o futuro do moliceiro, quando nos defrontamos, logo de início, com situações como esta? Eu só tenho uma resposta: sendo radicalmente realista. E é o que vou tentar transmitir a quem tiver a paciência de me ler, mesmo que, como me dizia um amigo aqui há dias, me tenha de dar razão, embora não queira concordar comigo.

Ainda há “almoços grátis” na Ria de Aveiro e quem os serve são os moliceiros tradicionais mas, há força de tanto dar, um homem fica sem dinheiro ou cansado de o fazer. A existência de moliceiros tradicionais na Ria de Aveiro não é explicável pela razão, mas pelo coração. Há bem poucos anos, aquando do bota-abaixo de um moliceiro na Torreira, o que lhe deu tempo de antena televisivo, o Presidente da Câmara da Murtosa, ao canal que o entrevistava, disse que não aconselhava ninguém a investir num moliceiro. Disse e não precisava de dizer mais.

Há pois que pensar em como financiar, sim financiar e não subsidiar, os moliceiros tradicionais. Investir num moliceiro tradicional traz sempre retorno às autarquias, ao comércio, à restauração, à economia da região. Só não traz a quem o mandou fazer. Isto é ser realista e radical, é dizer como as coisas são sem rodeios, nem floreados. Uns põem a mesa, outros comem.

Durante o verão de 2016, acompanhei dia a dia a construção de um moliceiro, no estaleiro do mestre Zé Rito, na Torreira, e tive oportunidade de acompanhar e servir de guia a curisos turistas de diversas nacionalidades. Um dia um francês ficou espantado quando lhe disse que o moliceiro em construção era para um particular. Em França, respondeu, estas construções são da responsabilidade do Património, do estado

Vamos então ao que importa.

No Jornal “Dinheiro Vivo” de 13 de Junho de 2016, pode ler-se, num artigo sobre a Câmara de Aveiro ….O Município encaixou em 2014 cerca de 1,2 milhões de euros, a receber em cinco anos, com a hasta pública para uso privativo de 10 cais de atracação nos Canais Urbanos para o exercício da atividade marítimo-turística ……..” (https://www.dinheirovivo.pt/economia/passeios-barco-financiam-investimento-municipal-nos-canais-aveiro/), rende bem o negócio! A pergunta é: quanto é que a Câmara de Aveiro investe por ano nos moliceiros tradicionais?

Há aqui uma fonte de rendimento, de uma entidade pública local, que poderia muito bem contribuir para o financiamento da construção/manutenção de moliceiros tradiconais. Não é essa uma das missões das autarquias? Apoiar a preservação do património local?

Por outro lado, e no âmbito do orçamento da Comunidade Intermunicipal da Região de Aveiro, deveria ser considerada uma verba anual para financiamento dos moliceiros tradicionais, contemplando duas vertentes:

  • manutenção (com obrigatoriedade de os moliceiros, que recebessem financiamento, participarem nas regatas a realizar)
  • construção (nas mesmas condições do anterior)

(Os subsídios atribuídos os participantes nas regatas são apenas isso, subsídios)

E os privados não deveriam contribuir também? Claro que sim. Aqui incluo as empresas que exploram os passeios turísticos nos canais de Aveiro, nos barcos que por lá andam a fazer de conta que são moliceiros, a fazer de conta que andam na ria – é tudo um faz de conta, que faz muito dinheiro – e a empresas regionais dos mais diversos ramos.

Sem afectar a imagem dos moliceiros, poderiam financiar a sua manutenção e preservação, sendo-lhes, em troca, atribuído espaço para publicidade nos locais onde se realizam as regatas. Tome-se como exemplo a publicidade que é feita nos campeonatos de surf ou windsurf, os patrocinadores não têm logotipos nas pranchas, têm cartazes e outros materiais de publicidade nas praias onde se realizam os eventos.

Como já escrevi em artigo anterior, não há moliceiros tradicionais a navegar sem uma tripulação que os saiba manobrar, pelo que não podemos esquecer e desperdiçar o saber dos “velhos” moliceiros e o seu papel no ensino da arte manobrar o moliceiro.

Com as actuais condições de financiamento público e privado, não há razão que explique o investimento num moliceiro tradicional. Tem razão o Sr. Presidente da Câmara da Murtosa, mas o povo tem um ditado que tudo esclarece “o coração tem razões que a razão desconhece”.

Apesar de tudo – grandes corações há na ria – nos últimos anos tenho assistido ao aparecimento de novos moliceiros, mandados fazer, recuperar, ou adquiridos por uma nova geração que nunca andou ao moliço. O MOLICEIRO fascina quem o vê e sente.

Para terminar, e porque este é um jornal digital, deixo-vos com o vídeo do bota-baixo do moliceiro FERREIRA NUNES, no Cais do Bico no dia 13 de Maio, e a entrevista ao seu dono – ouçam-na com atenção, por favor.

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Pensar o moliceiro hoje: Ria de Aveiro Radical (RAR) – parte 1

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22 mar 2018, 20:33

É preciso aproveitar o que já temos: os barcos, os “velhos” e “novos” moliceiros e as escolas de vela existentes na ria.

ahcravo gorim *

Fiquem desde já claras as seguintes questões: a Ria de Aveiro não são os canais da cidade de Aveiro; os barcos que circulam nos canais são “caricaturas”, algumas de muito mau gosto, dos verdadeiros barcos moliceiros, para não falar das de mercantéis que também por lá andam; todos sabemos e está por demais escrito que a função para que o moliceiro foi criado – a apanha de moliço – terminou e, com ela o papel que o moliceiro desempenhava na cadeia económica em que se encontrava inserido.

Importa pois pensar como é que este barco único no mundo, símbolo de uma terra, de uma região e até de um país, tem sobrevivido ao longo dos anos e como poderá continuar a existir.

As regatas

Uma das formas de os moliceiros “encaixarem” algum dinheiro é na participação em regatas, onde lhes são atribuídos prémios de presença, competição e painéis. Ao longo do ano realizam-se três, a da Ria – Torreira/Aveiro – a do Emigrante e a do S. Paio – no município da Murtosa.

Destas três regatas aquela em que os donos dos moliceiros amealham mais é na da ria mas, mesmo nessa, só lhes chega aos bolsos pouco mais de metade do subsídio que acttualmente a Comunidade Intermunicipal região de Aveiro (CIRA) lhe atribui – cerca de 17.000 euros.

A outra metade vai para a associação que organiza a regata e que tem de suportar os custos com dois almoços, seguros, taças e medalhas – se gastarem 2 mil euros é muito, se gastarem mais é desperdício. Quem tem ganho são as associações organizadoras, durante muitos anos a Associação dos Amigos da Ria, depois o Clube Náutico da Torreira e agora o rancho Camponeses da Beira Ria.

Claro que os donos dos moliceiros não ficam isentos de culpa, por receberem só metade. PORQUE NÃO CRIAM ELES UMA ASSOCIAÇÃO?

Escreveu Diamantino Dias: “Quando, em finais de Outubro de 1957, entrei para a Câmara Municipal de Aveiro como Fiscal Informador dos Servicos de Propaganda e Turismo, já se realizava, há alguns anos, o “Concurso dos Painéis dos Barcos Moliceiros”, que tinha sido criado por iniciativa de Arnaldo Estrela Santos, quando foi Vereador e Presidente da Comissão Municipal de Turismo.”

Durante alguns anos terá havido ainda uma regata entre S. Jacinto e Aveiro, em que a partida era, também ela, um espectáculo: os barcos estavam varados na areia e a regata inicia-se com a tripulação a saltar para o moliceiro e pô-lo a navegar (contado pelo mestre Zé Rito).

Será, no entanto, o mesmo Dimantino Dias que em 1978 – veja-se o anexo constante da segunda edição do livro “Moliceiros” de Ana Maria Lopes – terá a ideia de a regata partir da Torreira e terminar em Aveiro. O modo como expressa a necessidade de o fazer ainda não encontra, nos dias de hoje, uma visão tão ampla em quem a deveria ter. Fica aqui um breve excerto do que então pensou, concretizou e fixou em papel : “A minha ideia, quando propus a realização desta Regata, foi proporcionar, aos fotógrafos e cineastas, amadores e profissionais, 9 milhas náuticas ou 12 quilómetros – dos quais 8, pela estrada que liga a Torreira a S. Jacinto e 4, pela antiga estrada da Gafanha – e duas horas de hipóteses para fazerem excelentes imagens, que constituíriam óptimos elementos publicitários, susceptíveis de despertar a vontade de nos visitar a quem os visse.” (texto integral emhttp://www.prof2000.pt/users/avcultur/DiamDias/Ficcoes/Page280.htm)

Claro e simples, ninguém, nunca mais, escreverá melhor.

O turismo em ria aberta

Os passeios turísticos em moliceiros tradicionais têm sido uma das formas dos moliceiros, com licenciamento para tal, irem angariando alguns meios de financiamento – convém lembrar que o custo de um moliceiro pronto a navegar andará pelos 25.000 euros e a sua manutenção anual pelos 2.000. Mesmo que ganhasse todos os primeiros prémios das regatas existentes, nenhum moliceiro recebia o suficiente para a manutenção, quanto mais para amortizar o investimento.

A 29 de Janeiro contactei por email a Capitania do Porto de Aveiro, manifestando a minha intenção de mandar construir, ou recuperar, um moliceiro para a realização de actividades turísticas em Ria Aberta, pelo que solicitava informação sobre legislação e custos legais com aquisição e manutenção de actividade. Ao fim de duas semanas, sem qualquer resposta, recorri ao telefone. Fui muito bem atendido mas…. remeteram-me para o Capitão do Porto, a que me deveria dirigir por correio electrónico. Até à data em que escrevo esta crónica continuo à espera.

RIA DE AVEIRO RADICAL

Nunca ninguém tinha pensado que a Ria de Aveiro poderia ser palco para desportos radiciais, até que ao sul da Bestida nasce, pela mão de um homem de Espinho, Adriano Coutinho, o clube Nortada Aventura e o Kite Surf encontrou o seu “spot” perfeito.

E o moliceiro? Não será tripular um moliceiro um desporto radical? Porquê limitá-lo a velejar nas regatas, ou por puro prazer dos seus donos em dia de sol e algum vento?

Porque não pensar num moliceiro em que a tripulação é constituída por amantes da vela, devidamente treinados e que querem sentir emoções fortes tripulando um moliceiro? Para quem já andou num, à vela, em dia de vento, sabe o que tem de radical uma viagem destas.

Isto num moliceiro tradicional, sem quaisquer adaptações ou alterações. Raul Brandão pensou que ele era um barco de pesca quando viu as enguias misturadas com o moliço, é preciso agora pensar no moliceiro como barco radical e dar-lhe asas.

Claro que é preciso haver timoneiros que ensinem a tripular um moliceiro, que é preciso uma escola de vela para moliceiros, que será preciso definir em que zonas da ria onde poderão velejar e muito mais. Mas, fundamentalmente, é preciso aproveitar o que já temos: os barcos, os “velhos” e “novos” moliceiros e as escolas de vela existentes na ria.

Claro que é preciso muita coisa, mas o fundamental é que esta pode ser mais uma que poderá salvar DEFINITIVAMENTE o moliceiro.

Os desportos radicais têm cada vez mais aderentes e que de bom gosto pagarão para sentir todas as emoções que o moliceiro pode proporcionar.

O futuro do moliceiro está numa RIA DE AVEIRO RADICAL, com o moliceiro sempre como símbolo. Depende de nós e de quem “MANDA”. MAS FUNDAMENTALMENTE DE NÓS.

(continua na próxima crónica)

* mestre de artes e ofícios

link para a crónica

http://www.noticiasdeaveiro.pt/pt/47604/pensar-o-moliceiro-hoje-ria-de-aveiro-radical-rar-parte-1/