apenas um


quando os barcos envelhecem

 

serei ainda a mão
que te ajudará
mesmo que o não queiras
e o fará quando o peças
de mim não ouvirás
a temida palavra
não

estarei aqui
estarei onde for preciso
enquanto
for eu
serei ainda tu
mesmo se

somos
mais que um
mas a esse nos resumimos

a faina é dura


ana amaral

 

 

escuto o mar

e oiço-me menina

não esta mulher cansada

de tantos anos

sofridos

 

revejo tudo de novo

o alfredo, canalha ainda

aos meus pés

enquanto alava as cordas

o peixe

no saco a caminho da barraca

onde umas brasas

e broa

 

estou cansada

de tanta areia percorrida

tanta carga sobre os meus ombros

de mulher/homem aqui

 

o alfredo

já é homem

ajuda na companha e sorri

faz-me feliz vê-lo

é quando o perco de vista

e só vejo areia e mar

que tudo me pesa

 

a faina é dura

mais dura porém a fome

que ela mata

 

(torreira, 2009)

 

 

gente nobre esta


dizer o teu nome
mulher
erguê-lo por entre
os homens
saber-te aqui rainha
onde o mar

tarefas as mais diversas
te esperam
das mais simples e humildes
à voz de mando
de ordem
por sobre

é esta a praia
onde os pescadores
recusam
que deles  se diga
serem
os mais pobres
dos pobres

erguem-se orgulhosos
e solidários
aos seus irmãos mais pobres
ofertam o peixe
que sobra da faina
e são ainda maiores
 
gente nobre esta
a que do mar faz casa
marlene murta

(torreira; 2007)


			

o sorriso


cabaret

 

 

sorrio

eu sou o sorriso

tu és

o teu

sorriso

 

sorri com s

de sol

com s

de ser

sorri

se assim o entenderes

com s

de só

só sorrir

 

apetecem-me

lágrimas

escorrendo pela face

de tanto

sorrir

gargalhada húmida

esta

 

sorrio

sorrio apenas

 

não me irrita a ignorância

a petulância

o narcisismo

a estupidez militante

o exibicionismo bacoco

tudo isso

é o meu sorriso

 

é tão belo

e humilde

o sorriso

é

 

(cae; figueira da foz; jardins de inverno 2012)

arte são


 

 

precioso o rigor

olhos às mãos

atentos na minúcia

dos movimentos

precisos

 

gestos destros

de carinho

afaga metais madeira

pedra

 

do amor quotidiano

pelas pequenas coisas

despretensiosas

gentes obras erguem

ofertadas com a delicadeza

do chá saboreado em tendas

que nos cobrem do sol

do tempo em que

 

ali permaneço

preso ao labor e ao amor

não ao negócio

que esse vem depois

com a necessidade de subsistir

 

falo deles

e a arte são

 

(buarcos, feira medieval, páscoa 2012)

mãos de peixe, mãos de pouco pão


mãos de peixe, mãos de pouco pão


peixe para o gato

diziam

e lambiam os beiços

os bichanos

 

petisco

para a cerveja

e deslizavam

no prazer das bocas

de o saber fresco

sem espinhas

 

jaquinzinhos

servidos de aperitivo

em restaurante

com arroz de tomate

refeição

 

pequenos, dirás

junto à costa porém

parecendo muitos

são apenas os visíveis

minoria parca

face ao desbaste do arrasto

ao largo/perto

assim se confunde a árvore

com a floresta

e se abate aquela

enquanto os olhos se fecham

às grandes pescarias

 

os jaquinzinhos não matam

a fome dos pescadores da xávega

são o anúncio de que peixe maior virá

petisco de veraneantes

isso sim

de saco de plástico

como única ferramenta de trabalho

para além do

muitas vezes

ácido e crispado discurso moral

 

jaquinzinhos….

quem não gosta?

(torreira; 2009)

o mais belo barco do mundo


regata de moliceiros no s. paio da torreira, 2010

 

traz o sol no regaço

de menina esbelta

semeia de estrelas

as águas

desliza manso

como se não

 

beija a ria

com amor

de filho

de irmão

de amigo

(de despedida

agora quase)

 

aqui nasceu

e se fez

o mais belo barco

do mundo

 

o moliceiro

 

quem cuida dele

cuida de si

quem o não faz

não se sabe

mesmo se o pensa

é tempo


 

 

é tempo

meu amigo

e quando é

que podes tu?

 

belos foram os dias

de sol

coloridos os olhos

esquecidos de si

de tanto serem

o que viam

 

é tempo

meu amigo

reaprende a voar

e lembra-te que o bando

é coisa efémera

tanto

quanto bela

 

todos os dias

foram o dia

mesmo quando

parecia que não

eram sem o sentires

porque eternos os julgavas

 

é tempo

amigo

o inverno não tem data

senão no calendário

 

(ria de aveiro; canal de ovar)

são eu de novo


cais do bico, murtosa

 

nada dizem agora

as palavras

apenas os olhos

se abrem sobre

vês

 

o filme

silenciosamente

enche-te de memórias

e era ali

e já não é aqui

quem era já foi

tu

tu também

 

moliceiros mercantéis

caçadeiras

barcos da ria de então

deles cheia

esse sim o tempo

que cala as palavras

 

olhas apenas

recordas

revives

és de novo

e tantos

tanto

contigo