talhar o aberto


 

obrigado, tina rodrigues

aurora brandão

não sei o que não sei
e o não saber não custa
porque o não sei

o cultivar da ignorância
não é a ignorância do cultivado
é saber até onde posso

impossível saber tudo
bom saber muito
óptimo saber que sei

mas
já nem isso
perco-me demais
para me encontrar um pouco

não sei o como
sei que funciona
um dia vou saber mais
para ficar a saber o mesmo

talvez
fique feliz
talvez

 

(ria de aveiro; toreira; porto de abrigo)

 

obrigado tina rodrigues

o princípio da incerteza


alar da solheira (joão costeira)

estou de novo em plena ria
o joão ala as redes
suspenso do que nelas emalhado
poderá vir
terá largado num sítio bom?
terá tido sorte?

não há certezas
para além do saber da arte

o princípio da incerteza
pode ter sido enunciado por um físico
aplicado às ciências quase exactas
mas é dele que a pesca artesanal se faz
sem saber de ciência alguma

o joão continua sem pressas
braçada a braçada
a rede entra no barco

nada mais lhe resta que ter tido
sorte

(ria de aveiro; torreira; alar da solheira)

uma vez na xávega, sempre na xávega


 

 

 

 

a carregar a rede para zorra está o joão bastos ajudado pelo carlos tavares, o alfredo amaral faz uma pausa

a carregar a rede para zorra está o joão bastos ajudado pelo carlos tavares, o alfredo amaral faz uma pausa

 
poderia ser esta uma definição das gentes da torreira: da ria ao mar, do mar à ria, de portugal para outros mares, outras terras.

gente de andar, mestres em barcos de pesca longínqua, em frotas de outras países, emigrantes onde o trabalho compensa, os pescadores da torreira quando regressam a férias, só conhecem um caminho: aquele onde passaram os melhores e piores da sua vida, no mar a trabalhar na xávega.

o tempo passa salgado

 

(torreira; companha do marco; 2010)

estar vivo


olho o que vi
e escrevo o que penso
por ter ficado a memória
de ter visto

o longe faz-se perto
tudo pode ser aqui agora
igual jamais
diverso porque recriado

dou-te o que recebi
como revejo hoje
não como o vi

o que te ofereço é
a minha memória

constrói a tua
estás vivo para criar

(regata de moliceiros; murtosa; bico; 2007)

o tempo passou e…. está quase


pancada de mar no cabeço

pancada de mar no cabeço

 

o tempo de estar aqui convosco, em 2010, está a chegar ao fim.

a safra continuará até que o mar deixe

as imagens ficarão por mais tempo. a memória vai-se fazendo.

estamos quase a deixar que a geografia nos separe.

levar-vos-ei e sei que fico.

uma poucas mais e….

 

 

(torreira; companha do marco; 2010)

digo de mim


 

passa por mim o baixo mondego

passa por mim o baixo mondego

 

 

como somos breves

como é ilusório este corpo onde

pendurado o pensar

 

sento-me e vejo que tudo passa

num infinitésimo de tempo

passado presente e futuro estão

 

caio e levanto-me ainda

sorvo o instante como se o último

e grito como se nascesse

 

digo de mim

 

(da janela do comboio, algures entre coimbra e a figueira da foz