ai a mãezinha!


mulher da praia da leirosa
o retrato
é uma arte de encontro
com o retratado
que por vezes
se torna numa outra arte
a do encontro deste
com os seus

olhou-se
e não se viu
viu a mãe
e disse-o à irmã
 
“ai a nossa mãezinha!”

crescemos para os nossos
para sermos eles ainda
enquanto aqui
até com eles nos confundirmos
e os revermos quando
nos vemos
 
o retrato
não rouba a alma
como algumas culturas cultivam
o retrato
traz as almas de volta

é essa a aventura
de pedir:
posso fotografá-la?

(praia da leirosa; foto de 2008, reencontro em 2012)

ganhar o pão


ti alfredo fareja (falecido)

 

chega o saco à praia

com ele a esperança

de um bom lanço

farto de carapau

paga de tantas horas

de suor duas vezes salgado

 

chega o saco à praia

mas a mais das vezes

só rede

que peixe

as traineiras de noite

tomaram de assalto

invasoras da costa onde

outrora piratas

também

 

é este o momento

em que o mar

pagará ou não

a quem no mar tentou

mais uma vez

ganhar o pão

 

(torreira; 2007)

 

 

a vida do pescador


colher as redes da solheira
não têm outro relógio
que as marés
outra companhia
que a da mulher
filho ou parente

que esta arte
não dá para companheiros

são os últimos
pescadores da ria
têm todas as idades
começam novos
orgulhosos da primeira bateira
e acabam quando já não

correm o mundo
em busca do pão que a ria
já não dá
encontra-los no bacalhau
no arrasto
em todo o mundo
da islândia à terra do fogo
são senhores do mar

é esta a gente
da laguna
daqui partem
e são mestres
aqui chegam
para serem esburgados
pelos intermediários
 
-isto não é um poema
é a vida do pescador-

(torreira)

ombros de arrais


(torreira; 2007) – zé pato+arrais zé murta

verga-se o bordão
ao peso do rolo
não se vergam os homens
que mais são

de areia se faz
o caminho do mar
a companha é isto
o sermos todos o mesmo
e sabermos
quando um mesmo é mais
é esse o arrais

não é mais só por ser
é mais porque em tudo é
da voz às mãos
dos olhos ao corpo
ele é a companha
 
madrugada cedo
a quotidiana leitura do mar
o saber se
há ou não mar de largar
tarefa sua e sofrida
 
ombros mais largos
não
apenas ombros
de arrais


peso-me de mar


ti miguel bitaolra

pesadas passadas

enterram na areia

mais que os pés

enterram-me aqui

que este é o caminho

o meu caminho

 

o bordão

a que tantos se agarram

para andar

prende-me os passos

amarra-me ao chão

arranca-me os braços

 

sou

esta força escondida

no mais dentro de mim

este destino de ter aqui

um caminho

 

peso-me de mar

 

 

(torreira, 2007)