mãos de mar (39)


vou por aí

não conto os dias
foram são serão
sempre dias

conto risos e lágrimas
por chorar

os que se lavam em lágrimas
não imaginam como é
ficar sujo por falta delas

conto as mãos
as dadas as negadas
as que nunca e as que sempre
as do engano também

conto sonhos e desilusões
amigos que morreram
e outros que partiram
sem morrer

conto-me como coisa outra
um eu dentro de mim
revisito-me para me ver melhor
sinto que algures fui

hoje como sempre
vou por aí
sim amigo poeta
vou por aí

enquanto puder
vou por aí

vou por aí

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(por aí; ao pé do mar; num ano qualquer)

os moliceiros têm vela (290)


essencial o homem

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o moliceiro “Dos Netos”

por sobre o espelho
da ria o moliceiro
desliza à força da vara

em dias sem vento
ou de passagem de modelos
de nada serve a vela
fica o mastro a falar dela

essencial o homem
é a força de ser ainda o barco
a bandeira erguida

de uma terra que se busca
num tempo onde ainda não se sabe
se perdida por falta de raízes

numa suposta ria encanada
na cidade
há uns barcos que se fazem
passar por

essencial o homem
desmente-os

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o moliceiro “Dos Netos”

(torreira; regata do s. paio; 2010)

crónicas da xávega (223)


“Os intérpretes de vidas

…. Até que ponto podemos fiar-nos nos nossos amigos e conhecidos e sócios, nos nossos amores, nos nossos pais e nos nossos filhos? Quais as suas tentações e debilidades, ou o seu grau de lealdade e a sua fortaleza? …. E mais ainda: podemos prever que amigos vão virar-nos as costas um dia e converter-se em nossos inimigos? …. Podemos fiar-nos em nós, em que não seremos nós que mudaremos e nos viraremos e atraiçoaremos, que invejaremos um dia quem hoje mais amamos e não poderemos suportar o seu contacto nem a sua presença, e decidiremos reger-nos só pelo nosso ressentimento? …… “

(in Javier Marias, “O teu rosto amanhã”, 3º volume, “ Veneno e sombra e adeus” )

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depois de muita luta o barco ganhou o mar e fez o lanço

(praia de mira; 2010)

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depois de muita luta o barco ganhou o mar e fez o lanço

de véspera


de véspera

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de véspera
fazer as malas
as despedidas
pôr o bacalhau de molho

de véspera
fazer a preparação
para o exame do dia seguinte
matar o perú

de véspera
a ansiedade porque
tentar dormir para
dizem de mim que cedo chego

de véspera
ninguém morre
ninguém nasce

de véspera
nem estas palavras

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(praia de buarcos; 2016)

postais da ria (233)


‘miga

hoje no mercado de buarcos
fui abraçado por uma palavra

‘miga

conheci-a em setúbal
no bairro das fontaínhas
onde murtoseiros pescadores

quando a ouço regresso
aos tempos de eu menino
às vozes que pela ladeira

‘miga

diziam antes de começar
qualquer conversa

tempo em que todos
eram amigos e camaradas
por isso entre pescadores

‘miga

mais que a ouvir senti-a
há palavras assim
que nos chegam como se

um abraço

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a bela e o jim cirandam berbigão

(torreira; cirandar)