no dia em que cesária morreu_sodade


cesária évora_foto da net

 

à memória de cesária, um trabalho breve sobre sobre “sodade”, escrito em 2010, como apoio de Ernestina Santos )

sodade: canção da triste denúncia, revolta sofrida

se há povo que se pode considerar cidadão do é o povo de cabo verde, a diáspora é imensa e incontáveis os países onde buscaram melhores condições de vida.

quem não conhece a canção “sodade” que, apesar de cantada há muito por muitos, cesária évora trouxe para o palco do mundo? para mim, uma das mais belas canções que conheço e das mais dramáticas.

a letra, em crioulo e em português, devo-a à nossa amiga ernestina, ei-las:

(crioulo)

“sodade

quem mostra’ bo
ess caminho longe?
quem mostra’ bo
ess caminho longe?
ess caminho
pa são tomé?

sodade sodade
sodade
dess nha terra são nicolau

si bô screvê’ me
‘m ta screvê’ be
si bô ‘squecê me
‘m ta ‘squecê be
até dia
qui bô voltà

sodade sodade
sodade
dess nha terra são nicolau

(tradução um pouco à letra para se perceber bem as palavras)

saudade

quem te mostrou
esse caminho longe?
quem te mostrou
esse caminho longe?
esse caminho para são tome?

saudade, saudade
saudade
da minha terra são nicolau

se me escreveres
eu escrevo-te
se me esqueceres
eu esqueço-te
até ao dia
que voltares

saudade, saudade
saudade
da minha terra são nicolau”

porque é que um povo que é do mundo, para falar de saudade se refere a uma ilha ali tão perto, s. tomé?

é o drama que a canção denuncia de modo a escapar à censura, é a alma agrilhoada a espreitar a janela da liberdade.

o arquipélago de s. tomé e príncipe famoso pela qualidade do café e do cacau que produz, porém não tinha população que chegasse para a sua produção.

chamavam-se roças as explorações e roceiros os seus donos.

para suprirem a falta de mão de obra acenavam com promessas de fortuna aos cabo verdeanos, ali tão próximos. o contrato era celebrado por angariadores em cabo verde, conhecedores das necessidades do seu povo e dele sendo o primeiro carrasco.

a ida para s. tomé implicava o pagamento da passagem; um pedido de empréstimo a troco da promessa de bens futuros, resolvia o problema e iniciava a saga.

chegados à anunciada terra prometida, eram instalados em barracas do roceiro que, dentro do perímetro da roça, era dono e senhor de tudo: todos os bens necessários à sobrevivência dos trabalhadores tinham de ser comprados nas suas lojas. até as barracas tinham renda a pagar. o primeiro salário, já começava a não ser recebido, ao contrário era a dívida que nascia.

a safra terminada, faziam-se contas com o patrão e, em vez de ter dinheiro para receber, havia ainda dívidas para saldar. de assalariado a escravo a distância era curta.

o ciclo vicioso tinha-se iniciado: endividado para vir, mais endividado estava. como regressar?

quem ainda tinha alguém a quem pedir dinheiro para comprar a viagem de regresso e saldar a dívida ao roceiro conseguia regressar a casa, mais pobre do que tinha partido.

os mais pobres esses iam esperando….

a canção torna-se agora mais inteligível.

é esta a história por detrás de “sodade”, quem a ouve não imagina a dor que lhe subjaz, a revolta engolida, a vida sofrida.

será que todos os que a cantam lhe conhecem a história?

pequeno este contributo para a história de um povo que amo, de uma musicalidade inigualável.

ouço a cesária e emociono-me, como sempre.

mundo!

te


nós

 

despires-me-te
magia de saber
onde o corpo é

querer dizer-te
e não saber o quê
porque silenciada a voz
no sentir intenso de

caminhas por nós
caminhamos somos
erguem-se aquietadas
flores em botão
ansiosas por

bebe-mo-nos
a sede
e ficamos em silêncio
enquanto os corpos
cantam a música da vida

despires-te-me
te

quando o mar trabalha na torreira_ arrais zé murta


arrais zé murta (falecido)

 

olhos fixos no mar
não perco de vista os arinques
procuro a calime

vejo como se deslocam

pelos desvios
da perpendicular à areia
descubro as correntes

entretanto vou enrolando as cordas
preparando tudo para nova partida
que o tempo é pouco
e é preciso aproveitar
estes dias de sol e calmaria

pescador
em terra sou
o que as redes ao mar deitou

 

(torreira, século XX)

vem empurrar o sol


ainda há luz

 

anda

vem empurrar o sol

 

como são frios estes dias

gela-se por dentro

como se devagar fossemos

morrendo

e vamos, sabemo-lo,

mas podia ser de outro modo

 

como são pesados estes tempos

que tempos são estes

que não os queremos para ninguém?

 

as mãos

sonhos por dentro da concha

a aquecer um sol longe

 

rente à areia um vento ácido

tudo leva

sequer as gaivotas ficaram

casulos de penas com pernas

 

há um sonho de criança

poisado nestes dias

um luto na voz

 

porém

se empurrarmos o sol

as nuvens quebram-se ao peso da luz

 

quando o mar trabalha na torreira_mulher do torrão do lameiro


 

 

mulher do torrão do lameiro (?)

 

quanto tempo mais
andarei por aqui
a escrever no livro da xávega
as linhas poucas
da minha vida

os anos passaram
no correr da areia pelo vento
levantada

a noite aproxima-se

tudo olho com amor
porque tudo sou eu
em tudo estou ou estive

a minha assinatura
deixada nas cordas redes
peixe que escolhi e carreguei
é só mais uma
como eu

quanto tempo mais
andarei por aqui ?

fui de novo


de novo

escrevo o tempo
onde me inscrevo
gravadas na pedra dos dias
as palavras

inscrevo-me
em lado nenhum
não sigo qualquer escola
que não a do coração
a saltar-me para as palavras

estou
definitivamente estou
por mais incómodo
estou

não me inscrevam
em movimentos
inscrevam-me, isso sim,
no movimento
pois estou vivo
em todos os sentidos

agora mesmo
escrevi e fui de novo

recuso


  

a minha voz é vento

o meu olhar é luz

semeio sem saber se colho

 

recuso a caverna

onde vivos enterrados

recuso a cama

de cartão com gente dentro

recuso a mão estendida

na sede uma moeda

 

recuso o silêncio

espantado de não haver bocas

para tantas palavras retidas

recuso olhos sôfregos

nas montras onde só pão

 

recuso a desilusão amarga

consentida do ter de ser

recuso os sorrisos bolorentos

da caridadezinha

a distribuir o que a mais

 

recuso

porque quero diverso

este estar aqui

tão efémero e tão sofrido

para tantos

xávega, ainda o arribar


zé caravela
 
o barco aproxima-se de terra, está já à vista, em terra o pessoal prepara-se para as manobras necessárias ao “bom arribar”.
 
o zé, segura o cabo que tem na ponta o gancho que vai engatar no arganel da proa que, com outro camarada, com outro gancho, fará com que o barco se mantenha perpendicular à praia e seja rapidamente puxado pelo tractor.
 
delicada manobra esta.
 
(torreira; companha do murta; 2007)