as coisas elementares


indiferença de ser rio

 

falo das coisas mais
elementares

o sino da igreja
onde um galo não canta
um seixo rolado
guardando o tempo
dentro de si
um torrão de terra
grávido de uma semente

mais elementares ainda

os sorrisos presos nos lábios
das crianças tristes
as lágrimas
rios de salgados
nos leitos dos rostos abandonados
nos lares/depósitos

falo porque
estou cansado de comer silêncio
e ler poemas de amor
com tanto desamor
a caminhar por aí

as coisas mais elementares
são as que deviam ocupar
o ventre das palavras por parir

murmúrios


sobre a areia tábuas, nada mais que

de onde me vêm

estas vozes?

estes murmúrios?

 

trazidos pelo vento

caem sobre mim

como folhas de outono

também nós caímos

 

cairemos um dia

desfeitos em pó

palavras noutros

que o tempo levará também

 

o inverno

aproxima-se

sorrateiro abraça-me

 

deixa-me pendurado

de um beijo que não vem

eu sou a casa


uma vela, apenas isso

 

estar em casa

é estar em mim

 

aqui a música é minha

sou eu

que a escrevo com palavras

que a desenho

na pauta do corpo

 

encontrar-me-ás

sempre em casa

porque eu sou a casa

tijolo a tijolo erguida

a partir do chão sentida

 

encosto ouvido ao mar

batem-me à porta

fico na dúvida

se não serei eu lá fora

 

entra

a casa é humilde

sem decorações avulsas

enchem-na a memória

livros, discos, rabiscos

 

eu

eu sou a casa

que mais querer então?

memória do além tejo_encontro de olaria do redondo_junho 1981


 

 

quanto ficou por dizer

em tudo o que fizemos

 

bêbados de alegria

percorríamos as ruas

as tascas eram o santuário

do nosso encontro

 

dáva-mo-nos as mãos como velhos amigos

tudo partilhámos

sabido que é

que tudo quanto é belo

cedo morre de loucura

 

com a mesma sofreguidão

com que virávamos cervejas

sorvemos estes dias que recordo

como se fossem anos

e fizeram de cada um

um outro ainda muito diferente

só porque soubemos estar  juntos

 

(30 anos depois, a memória dos dias vive)

meditação breve


o caminho é a aventura

não sou

tudo o que quero

mas

quero ser

tudo o que sou

recuso-me a não ser

o que em mim é do que fui

 

serei sempre o ter sido

isso é ser

 

os dias caem sobre os dias

a bateira voga silenciosa

como se

algo mais que ela própria

madeira trabalhada por mãos sábias

que outras mãos

sábias também de outra arte

continuam

 

olho em frente

procuro um caminho por fazer

persigo a aventura

toca-me


 

(toca-me que tenho medo_sofia carvalho_blandisca)

 

sinto-me tão indefesa

tão só em mim

quero apenas

que me toques

um sentir-te

mesmo que não sintas

 

tenho medo do escuro

de ser tão pequena

e as noites tão grandes

 

lembras-te de quando me falavas

do sótão?

lembras-te do papão

que lá morava?

 

eu lembro-me

por isso tenho medo

(essas histórias não deviam existir

não deviam ser contadas)

 

toca-me agora

sim

toca-me agora que tenho medo

 

quando o mar trabalha na torreira_ti alfredo fareja (falecido)


ti alfredo fareja (falecido)

 

pende-me da boca o cigarro

assim os dias
escorregam pelo tempo

olho o peixe
ainda a saltar
é pouco não basta
faço as contas
a este viver
cansado
mais que o cigarro

outro lanço se seguirá

talvez
um sorriso na face vá nascer
com sabor a esforço compensado
peixe que seja pão
para todos

um cigarro pende-me da boca

 

(torreira, século XX)