postais da ria (288)


sopa de letras
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cirandar para a borda

 
a menina maria
e o ti zé augusto
foram os meus avós paternos
 
na ladeira das fontainhas
em setúbal
bairro de murtoseiros
e pescadores
tiveram uma mercearia
uma taberna e seis filhos
 
quando a sopa da menina maria
era mais cheirosa
o aroma corria pela ladeira
até casas menos abonadas
de onde vinham grávidas
com uma malga para uma sopinha
senão ficavam ógadas
sorria a menina maria
 
lembrei-me desta história
a propósito de certas visitas
a malga agora é outra
e a sopa é de letras
 
(torreira; cirandar; 2013)
crónica de janeiro no “Notícias de Aveiro”

crónica de janeiro no “Notícias de Aveiro”


A gripe, eu e os livros

0 foto título crónica dedic reg ria

O livro, qualquer livro, é a VIAGEM por excelência – a que o autor fez até o começar, a feita ao escrevê-lo, a que o leitor faz ao lê-lo e a que fará depois de o ter lido. Quantas viagens encerra um livro!

Ler é um factor de liberdade e de libertação, por isso houve quem entendesse que a felicidade residia na ignorância e fizesse desse princípio um dos pilares do seu poder. Chamaram-se, chamam-se, chamar-se-ão sempre, ditadores.

Apesar de todas as vacinas, este ano apanhei a minha dose de gripe, não muito forte porque vacinado, mas tive-a e valeu-me a saúde 24. Enquanto a cabeça pesava, não consegui ler e é essa foi outra doença.

Pensei, já com a cabeça mais leve, nos meus livros, no como são importantes para mim hoje, como é importante saborear a leitura sem pensar no que amanhã acontecerá ao livro. Porque os livros também têm histórias para contar – mais uma viagem. Pensar no que acontecerá aos meus livros, depois de mim, não resolve o problema deles, nem o meu, só me acrescenta problemas, então o melhor é lê-los, senti-los, falar deles.

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Neste apontamento breve queria falar de três livros que nas minhas estantes ocupam lugar de relevo – que, sem serem mais que os outros, são mais de mim -, “Os pescadores” de Raul Brandão, edição ilustrada dos Estúdios Cor, 1957, “A Ria de Aveiro”, de Augusto Nobre, Jaime Afreixo e José de Macedo, edição da Imprensa Nacional, 1915 e “Gente” de Eduardo Gageiro, Editorial O Século, 1971.

Sempre me interessaram os livros pelo seu conteúdo e não por outras razões. Quando, nos princípios da década de 80, o poeta Joaquim Namorado me quis vender, a preço de amigo, a primeira edição de Orpheu, respondi-lhe: Para quê Dr. Joaquim, já os tenho – tinha a edição fac-similada da Ática. Hoje, mais maduro, tê-los-ia comprado, não pelos livros, mas como memória do amigo – mas isso é outra história.

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Os três livros comprei-os porque me surgiram e porque não os tinha. Não são primeiras, nem décimas edições, são edições únicas. Interessante é que dos três, dois têm características especiais nas dedicatórias. “A Ria de Aveiro” tem uma dedicatória de Jaime Afreixo a um amigo, “A Gente”, tem a dedicatória de Eduardo Gageiro, confirmada a assinatura pelo autor, aos professores que lhe ensinaram as primeiras letras.

O livro de Gageiro foi quase dado porque tem uma folha com defeito. Os possíveis compradores que o folhearam antes de mim e o podiam ter comprado, desistiram quando viram esse defeito. Mas se o livro vale alguma coisa, em termos de história de vida de Eduardo Gageiro, é pela dedicatória. É preciso sentir os livros, folheá-los, cheirá-los – como faz António Lobo Antunes com as edições das suas obras.

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Quanto a “Os pescadores” em edição ilustrada, pensei nunca os arranjar e, de repente, aparece um anúncio de venda. Quando depois de o folhear “com carinho” página a página e percorrer todas as fotos, à mesa do café, ao regressar a casa foi abraçado a ele que subi os degraus. Só depois me apercebi do gesto e de como inconscientemente os afectos se manifestam. Era como se mais um filho, mais um neto. Não era só um livro.

Um livro nunca é só um livro, depois de o lermos o livro é uma parte de nós, da nossa história, do sermos mais. Porque um livro só nos acrescenta.

0 capa pescadores

Ler, ler, ler. Ler muito só faz bem. Ter um orientador de leituras, uma referência que nos vá dando dicas sobre o que ler, dentro do nosso caminho, é importante – devo muito a Joaquim Namorado e aos livros da biblioteca de meu pai.

A minha neta mais velha quando vinha ter comigo, pequenita, com birra ou a chorar, bastava-lhe ver um embrulho que já sabia ser um livro, para estender as mãozinhas e parar com birras e choros.

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foto de Santos de Almeida Júnior

postais da ria (286)


dos amantes
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o salvador e a maria do carmo, marido e mulher, camaradas

não sabem de pedras
mas de palavras e gestos
os amigos
perguntam antes de
sabem-te o bastante para
os amigos
não serem como amigos
os amantes
ou serem mais ainda
(torreira; safar redes; 2018)

crónicas da xávega (287)


o bairro da liberdade
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insuportável o grito
o terem razão e serem calados
 
a lenta construção da mentira
a segunda morte
 
insuportável o grito
a lenta construção da mentira
 
a segunda morte
o terem razão e serem calados
 
um bairro uma avenida
os marginalizados no centro
 
(torreira; a mão de barca; 2012)

os moliceiros têm vela (341)


os mestres
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o mestre construtor zé rito e o mestre pintor zé manel oliveira

 
fizeram-se no olhar
no fazer no serem aprendizes
 
herdeiros de saberes ancestrais
preservam memórias
 
os dedos das mãos serão muitos
para os contar
 
serão sempre os últimos antes
dos últimos
 
são os mestres
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o mestre construtor zé rito e o mestre pintor zé manel oliveira

 
(torreira; 2018)
 

mãos de mar (58)


volto já
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falo-te de um tempo
onde os dias se enroscam
preguiçosos e friorentos
sequiosos de sol
 
vai longe o verão
vão longe todos os verões
 
abraço-me e aqueço-me
sou a lágrima sustida nas cordas
dos cílios teimosos
 
amanhã quando acordar
ainda estarei constipado
nada que adoce a amargura
 
vou ver se roubo umas frases
bonitas e com elas fazer de conta
que sou o que gostava de ser
 
volto já
 
(torreira; o arribar do reçoeiro; 2016)