queria dizer-te desta solidão em que nos deixam os amigos que partem para sempre não não é a chamada do mar que os leva mas a da terra que não perdoa só isto te queria dizer

aos amigos
a alegria de estar na ria com os amigos e assistir ao espectáculo das regatas, é um acontecimento que não perco, que não perderei enquanto puder.
o agradecimento ao quim calmaria pela forma como está sempre pronto para mais uma regata e o saber “o que os fotógrafos querem”. boa safra nos mares do norte, quim
ao jim por ter “estado de prontidão” com a sua chata, para o caso de aparecerem amigos à última da hora e que quisessem acompanhar a regata no meio da ria.
ao jorge bacelar, ao silva tavares, à isabel lobo e ao pedro (que vieram de lisboa e do porto, de propósito), pela alegria de estarmos juntos e acontecer fotografia
ao amigo que, do paredão, quando viu chegar a chata, gritou “ah gorim!” – há quantos anos não se ouvia este grito na ria…
haja saúde e para o ano lá estaremos
vêm devagar
vêm devagar os amigos
chegam pela mão da memória
por vezes tarde demais
partem depressa os amigos
olho-os como se ainda
mas é tarde muito tarde
sei que partiram alguns
cada dia mais
enquanto eu vou resistindo
enquanto passear pelos dias
levo-os pela mão
e deixo-os convosco à conversa
nada mais posso fazer
o falecido manuel vieira (valas)
(murtosa; regata do bico; 2007)
a mais ninguém
cinzentos
os dias sucedem-se
monótonos diversos
suceder-se-ão
o tempo
esse assassino impune
a cada dia me leva amigos
levar-me-á
o que o tempo
me não roubou ainda
homens levaram
perdoo ao tempo
é da sua natureza
a mais ninguém
a mais ninguém
(torreira; a escolha; 2009)
dos sal e dos amigos
achegar
os amigos
digo
são o tempero dos dias
há-os porém
que de tão salgados
só fazem mal
(armazéns de lavos; 2017)
abraçar o vazio
o agostinho trabalhito (canhoto) e o ti augusto
estar vivo é
por vezes
abraçar o vazio
(torreira; 2013)
carta ao meu amigo miguel bitaolra
o tempo correu depressa
ti miguel
você deixou o mar
o corpo já não permite
a dureza da faina
lembro-me de si
e do alfredo fareja
das alegrias
das brincadeiras
do mar ali e nós
o ti alfredo já partiu
já partiram muitos
a areia é ainda a mesma
os barcos ainda vão ao mar
ainda há companhas na torreira
apeteceu-me escrever-lhe
oito anos depois
de lhe ter tirado esta foto
apeteceu-me a memória do que foi
quando não sei o que será
apeteceu-me agora
e agora foi mais forte
abraço ti miguel
(torreira; 2009)
o meu amigo ricardo
no reçoeiro, o esforço quando a manga chega e é urgente trazer o saco para terra, a máquina não basta.o homem sempre
14 anos de idade, 11 anos depois de o ter conhecido.
o homem e a máquina, a máquina do homem, do tempo, do esforço, do crescer assim rente ao mar, com o mar nos olhos a invadir o sangue.
o puto que já foi, no homem que é puto ainda, para mim
(torreira; 2016)
no reçoeiro, o esforço quando a manga chega e é urgente trazer o saco para terra, a máquina não chega.
bem hajas antónio brandão
nuno cunha e o mestre zé rito fixam a bica do moliceiro
há datas que não são para esquecer, esta é uma delas.
o nuno cunha (setenove) e o mestre zé rito, fixavam a bica da proa do moliceiro. a construção progredia.
eram muitos, como hábito, os que assistiam àquilo a que chamei “celebração da ria”, entre eles alguns dos irmãos “brandão”.
o antónio brandão veio, de repente, ter comigo e disse-me:
– sr. cravo, tenho lá em casa uma caixa que a drª andreia me deu, com desenhos de moliceiros, e que lhe deve interessar.
pegou na bicicleta e, pouco tempo depois, trazia na mão uma caixa branca, de arquivo, que me deu para as mãos.
abri e vi que era a tese de licenciatura, de 1999, da minha amiga andreia leite, falecida aos falecida em 2008, aos 31 anos, de leucemia, e que muito me ajudou nas pesquisas sobre o naufrágio do nathalie. o documento tinha dado origem à tese de mestrado que viria a defender na universidade portucalense.
fiquei sem palavras e só fui capaz de dizer ao antónio:
– guarda-o é uma oferta que deve permanecer na família.
– sr. cravo, dou-lho como se o desse ao meu pai.
os olhos falaram pelos dois, não fui capaz de dizer que não e limitei-me às palavras mais simples:
– nunca me hei-de esquecer deste dia, antónio.
– e eu nunca me hei-de esquecer de si, sr. cravo.
escrevo o que se passou e volto a sentir tudo……..
a memória aqui fica e o testemunho de uma amizade que junta várias.
a construção do moliceiro proporcionou-me um dos momentos mais sentidos em toda a minha passagem pela torreira.
bem hajas antónio brandão
(torreira; 2 de agosto de 2016)
18 de agosto
hoje o mestre zé rito continuou a trabalhar em pequenos, mas importantes detalhes da construção, nomeadamente a quase conclusão da bica da proa e ponteiras.
registei, pela sua valia humana de solidariedade e amor, o momento em que todos os que foram precisos ajudaram a colocar a tábua de baixo, do costado de bombordo.
tirando uma pequena lacuna na ré, o bombordo ficou fechado – até à hora em que saí do estaleiro.
talvez amanhã quando lá chegar já esteja fechado. quando saí ontem faltava colocar a tábua de baixo do costado de estibordo à ré, hoje de manhã já estava no sítio.
o barco vai-se fazendo de acordo com o saber do mestre, com os métodos herdados na sua aprendizagem e aperfeiçoados no seu fazer diário. de acordo com o seu tempo.
não sou técnico, sou o que olha e vê os homens e um barco que pulsa dentro deles e os faz rir e conviver, como se em torno de uma mesa farta.
o tempo aperta, o mestre não descansa, os amigos esperam, plateia atenta, que um pedido surja e logo é satisfeito.